Comer é melhor que sonhar

Era 1997 quando cheguei para morar e abrir uma lanchonete em Fortaleza. Algumas pessoas diziam que era um erro um cardápio com aqueles produtos. Outras, que era um momento de mudança de dieta e vários ingredientes apareciam nos supermercados. Eu ficava atordoada com as diferentes relações alimentares. Na terra onde nasci, as lanchonetes não vendiam bebida alcoólica, mas nossos clientes praticamente exigiram. Se não fosse alcoólico, era suco (em São Paulo era refrigerante) e as polpas começavam a ganhar mercado. Os olhos das pessoas brilhavam, querendo conhecer os novos sabores, sendo que alguns, para mim, já eram velhos. Apareceu o creme de leite e o feijão verde do Docentes e Decentes. O Peixe à Delicia ganhou mundo. Tive o prazer de comer o McRoque Feliz (genial!), que era um delicioso pão com ovo, servido por D. Orestina a partir das 4 horas da manhã. Lembro de um restaurante que ficava na entrada do Morro Santa Tereza (João Branco, salvo engano) que servia arroz frito e o melhor peixe que uma pessoa podia comer na vida. Mas lembro destas tradições irem rareando diante de tanta oferta e, em uma espécie de crime perfeito, os hábitos alimentares iam sendo substituídos, sem nenhum pudor, mas com obediência às questões de padronização e internacionalização dos sabores. Todos iam, então, praticando a autonomia do gosto, proposta por Fischler em seu artigo sobre a “gastroanomia”.

Uma lembrança deliciosa é a das refeições de congregação. Na primeira viagem que fiz com meus amigos, já em 2005, a ideia deles era ninguém ficar se “cansando” na cozinha. Eu achei aquela expressão a coisa mais esquisita que eu ouvi, já que, na casa do meu avô, as festas, os domingos e as alegrias eram sempre à beira do fogão. Bati o pé, fiz o cardápio e o supermercado. Nossa, como deu certo! Na segunda viagem, levamos um carro somente de comida. Seguimos então cozinhando sem preocupação com padronização, mas com muito sabor e pratos carregados de alegria. Alguns iam despertando interesses aos poucos, testando novas receitas, e hoje, temos até alguns cozinheiros profissionais entre os amigos. Ninguém sabia o que era gourmetizar, mas em um movimento social absolutamente padrão, todos seguiam o caminho que tornaria a cozinha um hobby consequente da grande oferta de produtos, da industrialização dos alimentos e da mudança de hábitos alimentares estudadas por Bordieu.

Seguimos sofrendo as intervenções. Fui assistindo a sociedade deixar de almoçar em casa por ser consumida pela falta de tempo. As ofertas deixaram de se resumir aos insumos e passaram a contar com os mais mirabolantes projetos. O plural movimento social foi tensionando, como é de sua natureza, ora agindo de maneira harmônica, ora sendo cruel. Hoje, estamos no momento cruel. Todos correndo de um lado para o outro, tentando sobreviver e esquecendo das refeições de congregação, se deixando dominar pela dureza que está viver, e esquecendo que as necessidades alimentares absolutamente não se resumem a nutrição. Sinto saudade das viagens. Da cozinha de casa cheia. Comer é concreto. Comer é troca. Comer é melhor que sonhar.

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