A cozinha e a sociedade

As características do comportamento humano durante os períodos históricos, reflete e muito a contemporaneidade de suas escolhas. E nem sempre tais escolhas são as mais acertadas, principalmente quando pensamos nas consequências destes atos. Hoje a alimentação é colocada para uma parte da população como um capital de entretenimento, sendo encontrada de forma abundante e muitas vezes sem a preocupação de sua escassez ou até mesmo origem. Na mesma sociedade encontramos uma parcela, que tenta administrar as contas para que minimamente consiga ter ainda no hábito alimentar, um bem social e cultural. Contudo, a grande base desta pirâmide trava batalhas diárias com as relações culturais e suas possibilidades econômicas para sobreviver no meio de uma reconfiguração alimentar. Paralela a todas essas questões, ocasionalmente, a dita “alta gastronomia” propicia um apagamento ainda maior destes laços, ao se apropriar de culturas alimentares, de forma superficial (e puramente extrativista) sem nenhuma conexão com as urgências daquele povo. Se tornando parte do problema e não da solução. Assim, tais representações de um povo em um prato, acabam por se tornar mais uma caricatura cultural (baseada num colonialismo alimentar) do que representação, preservação e divulgação de valores territoriais de um povo.

Assim a gastronomia entra em certos conflitos, muitas vezes internos, buscando talvez em um ato de “Antropofagia” para justificar sua própria existência (O Movimento Antropofágico foi um marco na literatura nacional, uma manifestação artística que aconteceu no Brasil na década de 1920, comandada pelo poeta paulista Oswald de Andrade que propunha basicamente ‘devorar’ a cultura e as técnicas importadas e provocar sua reelaboração com autonomia, transformando o produto importado em exportável). Assim como com Oswald, o “canibalismo” aqui pode ter o sentido positivo de deglutir a cultura de outros países (principalmente com as técnicas das cozinhas clássicas e as influências das culturas mundiais que perfazem nosso Brasil) e de transformá-las, através de um processo crítico de formação em uma moderna cultura gastronômica brasileira.

Porém é importante levarmos em consideração a necessidade daquilo que podemos transformar e aquilo que devemos preservar. Vivemos em um turbilhão de notícias e acontecimentos que giram ao redor das panelas. Cozinheiros e cozinheiras buscam seu ideal, seu objetivo, seu eldorado. Algo para se agarrar, lutar e se auto justificar. Essa hoje é a realidade das cozinhas profissionais. Por isso essas questões são importantes de serem avaliadas.

Passado

Tendo por base a cultura Europeia colonizadora, vamos a alguns fatos curiosos sobre os hábitos alimentares. No princípio não havia cozinha nas casas. A comida era preparada em um local público estrategicamente escolhido próximo a fontes de água. Esse era um comportamento comum observado em várias sociedades pelo mundo. Com o passar do tempo, foram encontrados registros de água encanada, desenvolvidas essencialmente para higiene pessoal, pois para o ato de cozinhar havia um obstáculo muito maior do que o acesso a água: O fogo. Essa questão sobre a segurança na tentativa de controle do fogo, nos remete aos Homo Sapiens, que elaboravam as fogueiras na entrada das cavernas como forma de proteção e segurança. E isso foi se repetindo até a formação de sociedades mais complexas. Na falta de tecnologia para o controle do fogo, a cozinha permaneceu em um espaço separado da casa principal, por questões de saúde e segurança, e futuramente também por questões sociais.

Mesmo depois do aparecimento da chaminé, introduzida após o final da Idade Média, encontramos nas plantas das casas até poucas décadas passadas, um enorme intervalo entre a cozinha e a chamada “área social”, que inclui inclusive a sala de jantar. Já nas casas mais humildes, a cozinha torna-se o lugar central de todas as atividades e interações dos habitantes que ali vivem, e foram anexadas a área de lavagem de roupas, as “áreas de serviço”, como são conhecidas até hoje, nos apartamentos dos grandes centros urbanos. Esta proximidade do ato de cozinhar ser pobre e feminina, explica grande parte da cultura alimentar ser representada por mulheres de baixo poder aquisitivo em todo mundo. 

Conflitos

Mas a modernidade trouxe dois grandes comportamentos sociais globais quase simultâneos, que formaram um dos grandes conflitos alimentares que vivemos nos dias atuais: o crescimento das cidades. É um processo irrefreável e, muito provavelmente, irreversível.

De acordo com o Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (UN-Habitat), a população urbana foi multiplicada por cinco entre 1950 e 2011 no mundo todo. Foi em 2007 que, pela primeira vez na história da humanidade, o número de pessoas vivendo em cidades ultrapassou a cifra daquelas baseadas no campo. De tal forma que no processo capitalista em que vive grande parte do planeta, a especulação imobiliária se transformou em uma ferramenta econômica poderosa e devastadora. Metros quadrados a peso de ouro começaram a determinar comportamentos sociais, pela falta de possibilidades. E casas começaram a ser empilhadas em prédios cada vez mais altos e os espaços antes determinados pela condição social de seus ocupantes, deram lugar para caixas de sapato em “endereços nobres”. Outra característica clara é o afastamento e a ignorância de grande parte da população quanto a produção alimentar, tornando crescente outro nicho econômico significativo –  a indústria de alimentos.

Paralelamente, a gastronomia profissional experimentava status de celebridade e os cozinheiros e cozinheiras que chefiavam suas brigadas deixaram a cozinha e foram apresentados a sociedade. Antes somente eles, e agora com muita luta, também elas. E a sociedade os abraçou. Não só os abraçou, como queria ser como estes bruxos e bruxas. E eram vistos com entusiasmo de Vatel e a disciplina de Escoffier. Então por não conseguirem modificar a planta daquelas casas de arranha céu, a saída foi inventar a varanda gourmet e assim se aproximar daqueles chefes tão reverenciados. Mas tais varandas para muitos, se tornavam somente uma relação social. A cozinha não havia conseguido sair da área de serviço (normalmente representada num corredor único que se integra com um tanque e máquina de lavar roupas), então ainda é um ambiente de uma única pessoa que ali permanece durante longas horas, longe do restante da família.

O ato de se alimentar       

Agora vivemos um movimento de desconstrução, que talvez seja o mais agressivo de todos – a casa sem cozinha. Já há projetos em construção pelo mundo. Afinal o futuro nos possibilitou terceirizar. E neste processo perdemos controle sobre quase tudo que nos mantém vivos. Talvez a última barreira seja justamente o ato de se alimentar. E ao que parece, esta já está sendo planejada para ser rompida. Na Inglaterra, França e Brasil apartamentos sem cozinha já são realidades. Está sendo lançado neste ano um empreendimento em São Paulo: um edifício com 72 apartamentos de 10 metros quadrados na região de Higienópolis, na zona oeste da cidade. Já uma imobiliária em Londres colocou no mercado um imóvel no bairro nobre de Hackney a possiblidade do sonho da casa própria por um valor abaixo do mercado, contudo, o morador deverá abrir mão de alguns “luxos”, tais como cozinha, fogão, sala de estar e quaisquer outros cômodos. Limitado a espaço para cama, um frigobar e um microondas, o imóvel pelo menos conta com chuveiro e sanitário em um espaço separados por paredes de dry wall.

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Apartamento da imobiliária Zoopla em Londres, sem cozinha.

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O projeto da construtora Vitacon em SP prevê uma cozinha comunitária para os moradores do prédio, na área social.

Apesar do ato de ingerir alimentos ser uma atividade biológica, ela não se encerra como tal. Entender uma sociedade por meio de seus hábitos alimentares é um recurso utilizado por muitos teóricos, mesmo que muitas vezes a análise do comer não seja o ponto central. Evidencia-se nestes estudos que o ato da alimentação representa bem mais do que uma prática encontrada na rotina de um indivíduo, não se relacionando apenas a sua subsistência. Tais hábitos perfazem intrinsecamente um conjunto de informações sobre as diferentes formas de ser, pensar e agir de uma sociedade.

Questionamentos

A provocação que fica é: será que saberemos encontrar o equilíbrio entre nossa cultura alimentar e os movimentos sociais do futuro, que presam por valores que se distanciam cada vez mais das identidades culturais que nos representam – em direção a um pseudo multiculturalismo-  baseado exclusivamente em uma sociedade de consumo?

E as novas possibilidades de representatividade da gastronomia profissional, irão levar em consideração a necessidade da proteção de uma cadeira produtiva, baseada em uma cultura alimentar ou viveremos essa síndrome de praça de alimentação de shopping, onde se encontra artificialmente representações caricatas das culturas mundiais, embaladas e prontas para viagem? Afinal de contas, abrir um restaurante (dito gastronômico) é somente um negócio ou ele deve possuir uma profunda representação sócio cultural, baseada na cadeira produtiva que representa?

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