No princípio não havia nada. Hoje tampouco.

Uma das coisas mais profundas que se aprende ao trabalhar com alimentação, é a relatividade dos valores. O fogo, soberano como somente ele é, quando se junta com as panelas, absolutamente não se importa com nenhum tipo de definição pré-estabelecida. O sal por exemplo, já provocou guerra. Já valeu muito. Hoje não vale quase nada. Porém vale muito. Sem ele a comida fica insossa, mas a quantidade certa dele, fica incrível. Contudo não se pode esquecer que com muito sal, fica intragável. Tente ler essa frase, trocando sal por dinheiro para você ver como vai ficar legal, ou não. O ovo, de frágil fica duro em poucos minutos. Mas se você não quiser duro, pode tirar do fogo antes e ao mesmo tempo ter uma parte dura e outra nem tanto. E o açúcar? Ouro branco. Escravas não podiam encostar. Hoje tem gente que diz que é um tipo de droga. Mas que é bom, é. Por muitas vezes, um prato rico de sabor é aquele de dois ingredientes e de jeito nenhum, o de dez. A gente precisa de muito fogo, mas é melhor que ele seja brando e lento.

Exatamente a mesma relatividade acontece com o oficio e os profissionais. O primeiro restaurante do mundo se propunha a restaurar doentes e viajantes cansados. Mas, já faz um tempo que tem restaurante matando lentamente as pessoas. Estudar é bom e essencial, mas tem muitos profissionais que estudam mais fora da escola do que dentro dela. Tem outros, que morrem de estudar dentro dela e são cheios de diplomas na parede, mas para o mercado de trabalho não valem nem aquele quilo de sal do parágrafo anterior (preço de hoje em dia, claro). Tem outros tantos que tem certeza que sabem o oficio, afinal estudaram “coisas” muito mais difíceis do que cozinhar. A mãe deles sabe cozinhar, como é que eles não saberiam? Abre restaurante. Negócio. Sem relacionamento, porque quem se relaciona é a vovó. Quebra. Rasga dinheiro e volta a comer na casa da mãe aquela comidinha fácil que somente ela sabe fazer. Mestres e doutores são exigidos pela lei. Mas não tem oferta de mestrado e doutorado. Então para atender a lei, e não ao fogo e as panelas, vem mestres e doutores de outras áreas cozinhar. Eles não sabem. Mas sabem e são necessários. O mercado de trabalho quer os formados. Mas quer pagar o que os não formados ganham. Os não formados ganham mal, por que não são formados, mas sabem mais do que os formados.

Se faltar amor, não tem comida boa. Mas se colocar amor demais, não se pode viver das panelas. Se faltar atenção e cuidado, queima. Mas a atenção tem que ser dada a várias panelas ao mesmo tempo e a todos os clientes, ao mesmo tempo aqui e agora. A cozinha da televisão, aquela que é um cenário de entretenimento, é bem limpinha e cheia de equipamentos de última geração e faz comida igual arte, só para gente ficar contemplando. A de verdade, aquela que faz comida com cheiro e gosto, é quente, estressante, viciante, escravagista. O fornecedor é avisado que não pode entregar depois das 10h. Mas ele chega as 13h. No meio do movimento. E entrega. O funcionário tem que ser pontual, disciplinado e ter um uniforme impecavelmente limpo. Mas ele dorme só quatro horas entre um turno e outro. Só tem dois uniformes. Trabalha de sábado, domingo e feriado. E acho isso massa! O cara que é considerado o príncipe da gastronomia, dizia que mulher não tinha capacidade de estar na cozinha. Mas foi e é a mulher que carrega nas mãos a milênios, o cultivo, o cuidado e a garantia da mesa posta. Mas ela ganha menos. Vale menos porque carrega menos peso. Mas vale mais. Muito.

Todo mundo come. Todo mundo precisa comer para viver. Mas quase ninguém se preocupa com isso. Dá para comer qualquer coisa. A indústria alimentícia garante a segurança alimentar. A vigilância sanitária garante a segurança do alimento. Mas queria saber quem garante a soberania alimentar. Quem vai sair do trabalho para garantir sua comida plantando? Quem vai ser o professor que vai deixar de seguir a lei da educação e vai ensinar de verdade a viver comida? Quem vai desrespeitar a lei para respeitar a lei da fome? Quem vai aprender com o passado para entender a relatividade dos valores alimentares e conseguir rodar a roda gigante. Proporcionar altos e baixos. Entender que o que vale hoje, não vale amanhã. Mas pode valer e alimentar muita gente. Quem?

 

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