O que a gente é depois que cresce

Dia desses recebi um desafio do Gustavo: vamos escrever sobre ficha técnica? Escrevemos. Como é um assunto que lido bastante, foi fácil. Sempre digo que é bem difícil escrever sobre comida e tudo o que a cerca, porque se tem uma coisa que não falta, é desdobramento. Mas, para falar das fichas, foi relativamente tranquilo. O texto era para a coluna dele em uma revista eletrônica, sobre gestão em gastronomia. Dias depois, recebemos um retorno do editor, dizendo que estava sendo bastante lido, que o tema é forte e que chama atenção. Pensei: que loucura! Uma coisa tão essencial, para um tipo de negócio considerado como sendo de alto risco, e ainda hoje, mesmo depois dos negócios gastronômicos já terem atingido a maioridade há muito tempo, ainda há dúvidas. Ainda há a necessidade de amadurecimento.

Até a década de 80 sem exageros, posso dizer que não existia gestão para estes tipos de negócios. As legislações, tanto trabalhistas quanto tributárias, não se preocupavam muito com eles. As coisas rolavam soltas, sem fiscalizações. A Vigilância Sanitária e a Nutrição se concentravam em hospitais e industriais alimentícias. Enquanto isso, restaurantes e botequins, trilhavam livremente e sozinhos, seus caminhos. Meu pai era policial de baixo escalão, e lembro-me dele ventilando a possibilidade de ser garçom. Além de achar elegante, todos de paletó e lidando com comidas e bebidas caras, lembro bem dele dizendo: eles ganham muito bem! As caixinhas são altas. Tem garçom que nem se preocupa com o salário fixo, de tanto que ganha de comissão e de gorjeta. Não sei se eu ou a mamãe, questionamos sobre o trabalho varar a madrugada, e a resposta veio rápida: eles vão para casa de taxi!

Bem, no final da década de 80, chegou no Brasil a primeira loja de fast food. Considero este tipo de negócio, uma pequena filial das grandes indústrias alimentícias. A proposta é a mesma: produzir fordianamente, utilizar o quão possível de equipamentos, garantir padrão – de estética e de gosto -, responsabilidade para a assepsia do alimento e, para manter preços baixos, pagar pouco aos seus colaboradores. Quantos aos salários é preciso um recorte. Mais de 90% dos negócios gastronômicos são de micro e pequenas empresas. A grosso modo isso significa dizer que normalmente são equipes de até 15 pessoas. Estes negócios têm em geral faturamentos oscilantes e fluxo de caixa frágil, já que não tem poder de compra e os fornecedores não cedem prazo e nem preço. Às vezes, acaba sendo mais vantagem comprar em um supermercado de varejo (que pelo poder de compra, chega a vender mais barato), com cartão de credito (que te dá 30 dd para pagamento) do que em fornecedor que dá 7 dias de prazo. Sendo assim, se algum pequeno empreendimento te oferecer um salário de sonhos, fuja! Porque ou o empresário está mentindo, ou está louco, ou está sonegando. Acredite, em nenhuma dessas opções vai dar certo.  Por outro lado, no caso dos fast foods, o negócio é puxado! Pagam por hora, por produtividade, descontam de um tudo e a filosofia de que seu esforço não vale nada, é aplicada todo o tempo, mas de tal forma, que você ainda agradece. Afinal, eles aceitam todas as pessoas para trabalhar, independente da experiência, por que eles ensinam tudo, claro.  Se colocam como dedicados professores, disciplinadores e uma excelente primeira porta de trabalho. De repente comecei a ver mães, aspirando seus filhos adolescentes em serem funcionários destas empresas. Meu irmão, trabalhou em duas.

Este tipo de negócio, caiu feito uma luva para aquele momento social, que ansiava por novidades e começava a se interessar por hábitos internacionais. Me lembro até hoje do gosto do primeiro sanduíche. Eu odiei! Mas, meus amigos ricos, que já haviam saído do país, diziam que era o máximo! E logo, os paladares foram adaptados pelos símbolos que essa comida representava. Em relação ao financeiro e operacional, eles eram/são uma potência. Tem até uma faculdade exclusiva! Desenvolveram seus métodos de controle, treinamentos persistentes e eficientes e foram crescendo, crescendo. Foram aos poucos matando os pequenos ao seu redor. Foram aos poucos conseguindo isenções tributárias e conquistando a confiança das fiscalizações. Os funcionários, ao serem admitidos, assinam um termo de responsabilidade, onde se comprometem por não usar o aprendizado em nenhum outro negócio, sob pena de processo. Os franquiados também. Alguns até, ficam proibidos por anos, de abrir um negócio de alimentos, após um possível fechamento da loja atual. Mantinham com esses procedimentos, não somente os seus negócios, como também garantiam continuar crescendo, continuar matando os pequenos, padronizar os gostos e ainda alterar as dietas alimentares, se sobrepondo as culturas. Países abertos a tudo, como o nosso, se tornaram os objetivos primeiros deles, até que uma hora, a entrada nos países mais fechados ficou quase que inevitável. Neste caso, fizeram algumas adaptações, mas continuam passando feito trator, nivelando tudo, ao produto e a marca deles.

Por outro lado, os heróis da resistência que ficaram, na sua maioria ainda são ingênuos em achar que é só abrir as portas porque todo mundo tem que comer, e seja bom ou ruim, terá cliente! Te garanto: além de todas as dificuldades que este tipo de negócio tem, seus concorrentes são gigantes e mundiais e você não tem a menor chance! Seus governantes, não tem a mínima noção sobre a importância que teu negócio tem. Tanto que eles não têm a menor vergonha de dar carteirada, pedir desconto em troca de um retrato na internet, ficar bebendo e comendo duas horas para além do horário de fechamento, mudar as receitas de seus pratos, e, no dia seguinte assinar mais um tributo para você pagar. Portanto, o mínimo que você pode fazer, são essas benditas fichas técnicas, para que você tenha pelo menos aonde se orientar. Não é mesmo?

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