Gastronomia não é só panela

O amadurecimento de professores(as) e estudantes estão levando os cursos de Gastronomia a compreender a cozinha sob outros ângulos. Eles sempre estiveram lá, mas era preciso ampliar a visão para ser capaz de enxergar que a cozinha não é a única possibilidade de trabalho. O estudo da gastronomia exige a pesquisa, o envolvimento profundo dos(as) estudantes com os meios de cultivo e produção de alimentos. Não é possível um(a) cozinheiro(a) se abster de algumas etapas, não ser um(a) ativista ecológico(a) e achar que está conectado(a) com as questões político sociais. A cozinha está no final de um processo produtivo e  pode fazer parte da solução ou do problema da cadeia produtiva inteira. Não há outra variável. Ao ignorar sua responsabilidade, se resumindo a comprador(a) de insumos para suas transformações, tabelando exclusivamente as compras baseadas na margem de lucro, você não somente faz parte do problema, como também contribui para a potencialização dele. Se nesta equação você procura as produções alimentares regionais, fazendo a diferença na economia local, entende a gastronomia como ferramenta social, pensa em soluções para a proteção da cultura alimentar, lembra que comer é um ato político e que é para todas e todos, você faz parte da solução.

SOBRE A FOME

A fome no Brasil é endêmica e epidêmica. Endêmica, pois temos hoje 13 milhões de brasileiros que não ingerem a quantidade suficiente de nutrientes por dia. Por isso, é necessário que se entenda porque nossa forma é também epidêmica. Ela é um “surto” desenvolvido por um fator específico, neste caso político. Manter um povo pobre, faminto e ignorante, é consequência de um insistente descaso político e da crueldade de considerar alimento somente e apenas um commoditie. Afinal, através de promessas rasas para uma população com carência alimentares e educacionais, num estado de largo desespero (principal causa da explosão de violência nos Estados) os votos são garantidos e há a manutenção de um grupo no poder. Um profissional especialista em alimentos tem então nas mãos e na mente, várias ferramentas para melhorar ou modificar uma realidade assim. É preciso não concordar com o que está posto, propor soluções para o desperdício e para a distribuição, compartilhar conhecimento técnico, procurar pequenos produtores e contribuir para viabilizar a circulação de seus produtos. Basta, deixar de ser consumidor e passar a ser coprodutor da cadeia produtiva alimentar se tornando assim capacitado(a) combatente contra a fome e potente mantenedor(a) da cultura alimentar.

CULTURA ALIMENTAR

O jeito mais certeiro de se definir o que é cultura alimentar, é quando compreendemos o papel e a importância daquele insumo dentro da cadeia produtiva local. Entender como ele é produzido, como é beneficiado e/ou transformado e como é servido, permite a necessária visão do todo. Os Peruanos entenderam isso, ao responderem que o peixe ideal para o Ceviche é o peixe fresco, ou o peixe selvagem como também dizem. Os(as) cozinheiros(as) de lá, conseguiram juntos(as) e independente dos órgãos governamentais, garantir consumo sustentável para o prato mais tradicional e mais consumido do país. Massimo Montanari nos disse que antigamente a aristocracia fazia questão de mostrar a comida dela para o mundo, como forma de poder. Viviam com a seguinte premissa; “Essa comida me representa, e somente eu a tenho, somente eu posso pagar por ela.” Montanari então lembra que ao resolvermos a questão de conservação e escassez, a ideia da “comida elitizada” (que era fortemente ligada ao ineditismo e a exclusividade), enfraqueceu em alguns lugares, a exemplo de seu próprio país, a Itália. Lá a comida acabou por se tornar uma identidade de nação, deixando seu valor aristocrático. Depois de um bom trabalho de vários escritores, usando a comida não somente como representatividade, mas também como elo de vários canais sociais, hoje em dia a comida italiana é conhecida no mundo todo, como Cozinha Italiana! Se tudo isso for feito com consciência permite que a valorização regional e a globalização do gosto (sem a padronização industrial) caminhem juntas sem problema nenhum. Inclusive, existe um conceito que alguns sociólogos chamam de “glo-cal”, que pode exemplificar isso. Ou seja, eles conseguiram registrar suas culturas, as aristocráticas e as populares, protegendo e entendendo a cadeia produtiva, proporcionando assim convivência sadia entre os camponeses e a indústria, e, utilizando a força da cultura alimentar a favor de todos ao se considerarem coprodutores para sustentabilidade produtiva.

CADA UM NO SEU LUGAR

Há uma forte necessidade de colocar insumos e pratos (receitas), em seus devidos lugares.  É importante e ao mesmo tempo consequente dessa visão mais clara que receita talvez seja o menos expressivo da cadeia. A forma de produzir o alimento através de uma agricultura honesta e limpa, o processo de manipulação e transformação utilizando técnicas que garantam não somente a beleza como também a segurança do alimento, e a proteção ao valor cultural (hábitos, religião….) envolvidos, deverão sempre se sobrepor a uma formulação. Dependendo do ponto de vista, receitas acabam por engessar o processo, assim como por justificar desrespeitos tanto para com a natureza, como para com questões sociais.  O registro das receitas não é o menos importante, mas não deve nunca ser o único objetivo. A gastronomia pode ser um coletivo infinito de possibilidades para diversas soluções. Porém o mesmo que é sua força, em um constante movimento bilateral interno/externo, acaba por se tornar sua fraqueza. Isso justifica a necessidade do conhecimento da cadeia toda. Pois somente assim, fica possível enxergar as importâncias, perceber os detalhes, ter conhecimento suficiente para usar a criatividade e ser possível usar o potencial de insumos, processos e pessoas, correta e adequadamente. Ficou claro porque gastronomia não é somente uma panela, não é mesmo?

3 comentários

  1. Gostei muito do texto. O nome do autor poderia estar bem visível para facilitar citações. Sou professora e gosto muito de dividir textos assim com os alunos e facilita demais quando a formatação da citação é fácil.

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    1. Olá Selena, tudo bom?? Obrigado pelo retorno. O blog é escrito pelos professores Gustavo Guterman e Vanessa Santos! Estamos a disposição para ajudar no que for necessário. Um grande abraço!

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