A fome, a violência e a agricultura

 

O que a miséria das grandes cidades, a fome, a violência urbana, a reforma agrária e a cozinha tem em comum?

A cozinha profissional sempre preconizou a qualidade dos insumos como marco zero para a construção de um bom prato. “Sem bons ingredientes, não há boa cozinha”- Paul Bocuse . Carlo Petrinni afirmou em uma conversa há muitos anos que “ativista ambiental que não é um cozinheiro, possivelmente é uma pessoa triste, agora um cozinheiro que não é um ativista ambiental, sem dúvida nenhuma, é um tolo”.

A partir destes dois pensamentos, percebe-se que perceber a gastronomia profissional como meramente uma “expressão artística” e uma “experiência” não só é reducionista como nos priva de pensar na complexidade deste campo. Por anos essa percepção da “gastronomia entretenimento” nos é enfiada goela abaixo em programas de televisão e chefs de cozinha deslumbrados com os encantamentos de uma dólmã com seu nome bordado. 

Particularmente acredito que esta ideia que limita a abrangência da gastronomia enquanto campo acadêmico e prático, objetiva justamente enxergar como as questões alimentares estão intimamente conectadas, evitando que questionemos certas pessoas e certos processos das inúmeras  cadeias produtivas que desembocam em uma cozinha doméstica ou profissional.

E você sabe qual é o resultado desta nossa ignorância? Justamente a crise alimentar em que há muito estamos inseridos! Alimentos envenenados, queimadas criminosas, apartheid social no campo e na cidade… Tudo está intrinsecamente ligado.

Sendo possivelmente os dois extremos sociais, A FOME e o LUCRO, um dos maiores gatilhos de todo o processo.

Então, (futuros) cozinheiros e cozinheiras, entendam que se nossa gastronomia não ultrapassar urgentemente a barreira dos luxuosos empratados, cheios de texturas e contrastes, e começar a discutir as questões agrárias em nosso país, seremos sempre os promotores do entretenimento (vulgo bobos da corte) de uma elite que dita as regras neste país desde

O que a arquitetura das grandes cidades, a fome, a reforma agrária e a cozinha têm em comum?

A cozinha profissional sempre preconizou a qualidade dos insumos como marco zero para a construção de um bom prato. “Sem bons ingredientes, não há boa cozinha”- Paul Bocuse . Carlo Petrinni afirmou em uma conversa há muitos anos que “ativista ambiental que não é um cozinheiro, possivelmente é uma pessoa triste, agora um cozinheiro que não é um ativista ambiental, sem dúvida nenhuma, é um tolo”.

A partir destes dois pensamentos, percebe-se que perceber a gastronomia profissional como meramente uma “expressão artística” e uma “experiência” não só é reducionista como nos priva de pensar na complexidade deste campo. Por anos essa percepção da “gastronomia entretenimento” nos é enfiada goela abaixo em programas de televisão e chefs de cozinha deslumbrados com os encantamentos de uma dólmã com seu nome bordado.

Particularmente acredito que esta ideia que limita a abrangência da gastronomia enquanto campo acadêmico e prático, objetiva justamente enxergar como as questões alimentares estão intimamente conectadas, evitando que questionemos certas pessoas e certos processos das inúmeras cadeias produtivas que desembocam em uma cozinha doméstica ou profissional.

E você sabe qual é o resultado desta nossa ignorância? Justamente a crise alimentar em que há muito estamos inseridos! A gastronomia, a concentração fundiária, a produção dos alimentos, a derrubada de florestas e o apartheid social no campo e na cidade… Tudo isso está intrinsecamente conectado. Sendo possivelmente os dois extremos sociais, A FOME e o LUCRO, um dos maiores gatilhos de todo o processo.

Então, (futuros) cozinheiros e cozinheiras, entendam que se nossa gastronomia não ultrapassar urgentemente a barreira dos luxuosos empratados, cheios de texturas e contrastes, e começar a discutir as questões agrárias em nosso país, seremos sempre os promotores do entretenimento (vulgo bobos da corte) de uma elite que dita as regras neste país desde 1500.

Para tal reflexão é importante entendermos alguns fatos e conceitos;

ÊXODO RURAL

O êxodo rural é o fenômeno de deslocamento da população do campo para a cidade. No Brasil, ele teve início no século XVI, com a produção de açúcar, e se intensificou a partir de 1930, com a industrialização e a urbanização. Os principais ciclos econômicos que provocaram o êxodo rural foram:

• O ciclo do açúcar (século XVI-XVIII): levou os trabalhadores rurais a se concentrarem nos engenhos do Nordeste.
• O ciclo do ouro (século XVIII): atraiu os camponeses para a região das minas no Centro-Sul.
• O ciclo do café (século XIX): estimulou a migração dos agricultores para o Sudeste e o Sul.
• O ciclo da borracha (final do século XIX e início do XX): incentivou o fluxo de camponeses para a Amazônia.

O êxodo rural teve como consequências a concentração de serviços nas cidades, o crescimento desordenado dos espaços urbanos, a especulação imobiliária, a sobrecarga da infraestrutura e a marginalização social. Por outro lado, o campo ficou esvaziado e subdesenvolvido.

Segundo o IBGE, em 1940, apenas 26,3% da população brasileira vivia em áreas urbanas. Em 1980, esse percentual subiu para quase 70%. O Brasil se tornou um país predominantemente urbano na década de 1970, quando mais da metade da população residia nas cidades.
Talvez as quatro matérias a seguir ilustrem de forma significativa a construção da nossa realidade;

Talvez as quatro matérias a seguir ilustrem de forma significativa a construção da nossa realidade;

Agricultura familiar do Brasil é 8ª maior produtora de alimentos do mundo  

“Levantamento feito pelo portal Governo do Brasil mostra que a agricultura familiar tem um peso importante para a economia brasileira. Com um faturamento anual de US$ 55,2 bilhões, caso o País tivesse só a produção familiar, ainda assim estaria no top 10 do agronegócio mundial, entre os maiores produtores de alimentos.

(…)De acordo com o último Censo Agropecuário, a agricultura familiar é a base da economia de 90% dos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes. Além disso, é responsável pela renda de 40% da população economicamente ativa do País e por mais de 70% dos brasileiros ocupados no campo.”

Governo do Paraná despeja 54 famílias que produziam alimentos

“(…)A terra estava ocupada pelas famílias desde de que o Governo Federal a declarou como de interesse social para fins de Reforma Agrária, com base na avaliação de improdutividade feita pelo INCRA, em 2010. Além de improdutivo, o imóvel rural Fazenda Prudentina, de 852,9 hectares, não tinha nenhum morador.

Com a decisão do Desembargador, a área volta às mãos da família Camargo Pimentel, que carrega dois nomes tradicionais da elite paranaense. Já as 54 famílias, que antes viviam da produção na terra, agora serão abrigadas em espaços públicos municipais, sem perspectivas de voltarem a ter um local permanente de moradia e produção.”

Para aonde vocês acham que essas famílias irão migrar? Que vida terão? Se o campo não é uma opção, a cidade se torna a saída. Uma vida de recomeços e incertezas. Assim começa muitas vezes a vida de moradores de rua das grandes cidades…

Mineradoras em Goiás estão expulsando famílias camponesas de suas terras

As Mineradoras CMOC BRASIL e MOSAIC FERTILIZANTES, que exploram minérios (nióbio e fosfato) em Catalão e Ouvidor, em Goiás, estão sendo denunciadas pelo Movimento Camponês Popular (MCP) por violar os direitos das famílias que vivem na região. Segundo o MCP, as empresas estrangeiras estão expulsando as famílias de suas terras sem pagar o valor justo ou indenizar adequadamente. As famílias, que antes produziam alimentos saudáveis e geravam trabalho e renda, agora sofrem com a violência, a poluição, os problemas de saúde e as ações judiciais das mineradoras. O MCP repudia veementemente essas práticas e exige respeito aos camponeses.

Invisíveis nas estatísticas, população de rua demanda políticas públicas integradas.

Em 2022, o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) registrou 236.400 pessoas (1 em cada mil) vivendo em situação de rua, abrangendo essa população em 64% dos municípios brasileiros. Para apoio deste público, entre 2017 e 2022 foi registrado o aumento de Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centro Pop), somando 246 estabelecimentos e totalizando mais de 578 mil atendimentos. 

O perfil dessa população é majoritariamente composto por homens (87%), adultos (55%) e negros (68%). Em relação às violações de direitos humanos, o estudo revela que homens negros e jovens correspondem às principais vítimas desse tipo de violência. Pessoas pardas (55%) e pretas (14%) somam 69% das vítimas e a faixa etária mais atingida é de 20 a 29 anos (26%), seguida dos 30 a 39 anos (25%). Quanto ao tipo de violência, 88% das notificações, de 2022, envolviam violência física, sendo a violência psicológica a segunda mais frequente (14%).”

E como os governantes tem tratado essa população de rua?

Você conhece o termo, “Arquitetura hostil”? Este foi cunhado em junho de 2014 pelo repórter Ben Quinn no jornal britânico The Guardian.

Arquitetura hostil: A cidade é para todos?

“Originalmente intitulada Anti-homeless spikes are part of a wider phenomenon of ‘hostile Architecture (As pontas de ferro anti-desabrigados são parte de um fenômeno mais amplo conhecido como “arquitetura hostil”), a matéria surpreendeu cidadãos de todo o mundo que passaram a notar em seus contextos as práticas listadas por Quinn. Ali ele discorreu sobre como o desenho urbano têm influenciado o comportamento e o convívio, criticando como a abordagem ao mesmo tem buscado excluir moradores em situação de rua dos centros urbanos.

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В Китае "ежиков" поставили на борьбу с бомжами - ФОТО

Os exemplos são muitos: em Guangzhou, na China, em uma área livre coberta abaixo de um dos viadutos da cidade, foram introduzidas milhares de pedras pontiagudas para evitar que moradores de rua se apropriassem do espaço como abrigo. A mesma solução foi aplicada abaixo de viadutos e passarelas de Belo Horizonte, em Minas gerais, e em muitas outras cidades pelo mundo.

As realidades podem ser ainda mais ríspidas. Cercas elétricas, arames farpados, grades no perímetro de praças e gramados, bancos públicos com larguras inferiores ao recomendado pelas normas de ergonomia, bancos curvados ou ainda assumindo geometrias irregulares, lanças em muretas e guarda-corpos, traves metálicas em portas de comércios, pedras em áreas livres, gotejamento de água em intervalos estabelecidos sob marquises, e tudo que puder de alguma forma afastar ou excluir pessoas “indesejáveis” dos locais públicos.

Partindo dos números alarmantes e notícias quanto ao número de pessoas vivendo precariamente nas ruas, de óbitos causados pelas baixas temperaturas no inverno, da fome e condições degradantes, o que se percebe, é que ações promovidas pelos Órgãos Públicos e população deflagram a falta de gentileza, que diariamente “fecham seus olhos” para a cruel realidade.”

O tema é bastante complicado e abrangente, e não pode ser abordado de maneira simplista. O número alarmante de moradores de rua expõe desigualdades estruturais na sociedade brasileira, evidenciando o estado mais degradante que um ser humano pode chegar. Muitas vezes tal situação eclode pela falta de opções, como o abandono familiar, a dependência química, problemas psiquiátricos, ou a desapropriação rural vista acima. E isso tende a se agravar pela falta de uma discussão aprofundada sobre a necessidade urgente de uma reforma agrária em nosso país. E por que a reforma agrária é tratada como algo criminoso no Brasil?

Porque ruralistas mandam neste país há muito… Segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro ( um dos maiores pesquisadores da escravidão no Brasil) no dia 13 de maio de 1888, há 130 anos, o Senado do Império do Brasil aprovava uma das leis mais importantes da história brasileira, a Lei Áurea, que extinguiu a escravidão. Não era apenas a liberdade que estava em jogo, diz o historiador, afinal o outro tema na mesa era a reforma agrária.

A maior parte do movimento republicano fechou com os latifundiários para não mexer na propriedade rural”, diz Alencastro. Foi aí que veio a aprovação da Lei Áurea, sem nenhuma compensação ou alternativa para os libertos se inserirem no novo Brasil livre. “No final, a ideia de reforma agrária capotou.”

Assim o ciclo se fecha. O campo é dominado pelo agronegócio (desde o século 19), onde pequeno produtores rurais e indígenas (alicerces da nossa produção e cultura alimentar) são expulsos ou mortos; a população negra, escravizada no Brasil Colônia e ignorada, após uma pseudo l inserção social após a abolição, procura até hoje uma reparação histórica que se reflete nos covardes índices que lideram, como vítimas da violência urbana e pobreza extrema. (não esquecendo, é claro, da complexa e rica cultura que está intrinsecamente atrelada a nossa alimentação e costumes nacionais) .

O número da população em situação de rua só faz crescer, e uma das medidas tomadas é justamente a hostilidade arquitetônica, aliada a raras e enfraquecidas políticas públicas para reparar tal dano.

Por fim, grande parte população continua ignorando a ligação íntima entre todos esses fatos, deixando de observar e discutir um dos principais fios condutores que conectam a realidade triste da nossa crise alimentar com as profundas mazelas sociais que nos assolam diariamente.

Essa discussão é pauta das minhas aulas há tempos. Quem mais pode discutir com propriedade a fome, a comida, as cadeias produtivas e a cultura alimentar no Brasil, senão professores e alunos de gastronomia?

Para além das questões agrárias, outro tema importante que sempre abordo é o desperdício de alimentos no país.

Enquanto milhões não têm o básico para se alimentar, o Brasil está entre os dez países que mais desperdiçam comida no mundo: anualmente, 27 milhões de toneladas de alimentos vão parar no lixo, segundo a ONU. Cada brasileiro joga fora todo ano, em média, 60 quilos de alimentos ainda em boas condições para consumo. Nos supermercados, apenas em frutas, legumes e verduras, o país perde anualmente R$ 1,3 bilhão, conforme levantamento da Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS).

How Wasted Food Turns into Huge Amounts of Greenhouse Gas - Scientific  American

Sobre isso, conversaremos numa próxima oportunidade!

REPORTAGENS IMPORTANTES

“Insegurança alimentar é um eufemismo para a fome”, diz pesquisador – https://apublica.org/2018/09/inseguranca-alimentar-e-um-eufemismo-para-a-fome-diz-pesquisador/

Fome oculta – https://apublica.org/2018/09/fome-oculta/

FONTES >>

Fonte: Enquanto 13 milhões passam fome, cada brasileiro desperdiça 41 quilos de comida por ano – https://domtotal.com/noticia/1355588/2019/05/enquanto-13-milhoes-passam-fome-cada-brasileiro-desperdica-41-quilos-de-comida-por-ano/

Fonte: Agricultura familiar do Brasil é 8ª maior produtora de alimentos do mundo https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/10/11/agricultura-familiar-cra-aprova-aumento-de-compra-para-merenda-escolar

Fonte: Governo do Paraná despeja 54 famílias que produziam alimentos
http://www.terrasemmales.com.br/governo-do-parana-despeja-54-familias-que-produziam-alimentos/?fbclid=IwAR36aSSVJuIpgd-T4avy5V43fNRIs6IymPXcfSI7Kjzl3H0vLqY7__NhiEw

Fonte: Arquitetura hostil: A cidade é para todos?
https://www.archdaily.com.br/br/888722/arquitetura-hostil-a-cidade-e-para-todos

Fonte: Invisível nas estatísticas, população de rua demanda políticas públicas integradas https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/especial-cidadania-populacao-em-situacao-de-rua

Fonte: Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária, diz historiador https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44091474

Fonte: Mais de 80% dos brasileiros e de 95% das empresas jogam comida fora, mostra estudo https://exame.com/ciencia/mais-de-80-dos-brasileiros-e-de-95-das-empresas-jogam-comida-fora-mostra-estudo/

Fonte:  MDHC lança relatório sobre pessoas em situação de rua no Brasil; estudo indica que 1 em cada mil brasileiros não tem moradia https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/setembro/mdhc-lanca-relatorio-sobre-pessoas-em-situacao-de-rua-no-brasil-estudo-indica-que-1-em-cada-mil-brasileiros-nao-tem-moradia

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