A importância da literatura na Gastronomia

Entender a importância da literatura dentro da gastronomia, acredito que seja singular para seu próprio amadurecimento. Já escrevi isso em alguns textos meus, mas possivelmente não tenha dedicado o tempo necessário para fundamentar sua importância para cozinheiros e cozinheiras de nosso país.

Grandes referências como Dan Barber e seu estupendo livro O TERCEIRO PRATO, ou Michel Pollan com o sensível COZINHAR, ou ainda o mestre Bourdain com o insubstituível COZINHA CONFIDENCIAL, nos mostraram como é importante e necessária uma boa literatura que verse sobre nosso mundo. Ainda consigo me encantar com o Ariovaldo no seu imprescindível DO CAÇADOR AO GOURMET. Volume este que uso permanentemente nas minhas aulas de História da Gastronomia.

As obras

Existem ainda raridades literárias nacionais como COM UNHAS DENTES E CUCA escrito numa parceria de Carlos Alberto Dória e Alex Atala, um registro de como nossa ciência é multidisciplinar.  Nos clássicos temos o polímata Gilberto Freyre com seus incontáveis registros nacionais, onde se destacam títulos como CHINA TROPICAL e AÇÚCAR: UMA SOCIOLOGIA DOCE.  Câmara Cascudo com o  HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO NO BRASIL, que é um  importante registro literário da gastronomia moderna. Voltando para uma visão global dos escritos no âmbito alimentar, temos o gigante professor de Bolonha, Massimo Montanari, nos provocando com singular historiador francês Jean-Louis Flandrin (falecido em 2001) no compêndio HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO, ou ainda sozinho com o inesgotável COMIDA COMO CULTURA. Contudo há de se perceber que é somente citado aqui, autores homens e brancos. O que se torna absurdo, se pensarmos que grande parte da cultura alimentar e hábitos alimentares são pautados no Brasil a partir de mulheres, em sua grande maioria, negra.

Apesar dos negros e negras representarem 54% da população brasileira, e o país ter sido um dos últimos no mundo a abolir a escravidão de cidadãos africanos em seu território, nossas principais referências bibliográficas no que se refere a culturas alimentares, é branca (europeia) e masculina.
E qual é o impacto disso? Provavelmente a cíclica reprodução de uma gastronomia masculina e europeizada, que nos afasta gradativamente da nossa verdadeira história e cultura.

A importância

Mas qual é a importância da literatura para a gastronomia?  História e literatura estão entrelaçadas entre si. A história em linhas gerais não é apenas sobre lutas de poder, guerras, nomes e datas. É sobre pessoas que são produtos do seu tempo. Hoje o mundo não é como era no século passado; as pessoas mudaram, em grande parte. Seus hábitos, suas crenças, sua visão de mundo e sua relação com o alimento. Sem literatura, não saberíamos sobre nosso passado, nossas famílias, as pessoas que vieram antes e andaram no mesmo terreno que nós. Toda a literatura, sejam poemas, ensaios, artigos científicos, romances ou contos, nos ajuda a entender a natureza humana. Talvez o que nos mova ao registro permanente de nossa passagem pela Terra seja justamente a necessidade evolutiva da espécie. E nestes escritos encontramos nossas mais profundas dúvidas e medos, sucessos e fracassos, as bondades e maldades, compaixões e empatias e a realização mesmo que na imperfeição de feitos científicos e filosóficos. Aprendemos que a imperfeição nem sempre é ruim e que o normal pode ser entediante. E assim se conclui que possivelmente precisamos de literatura para nos conectar com nossa própria humanidade.

Para compreender o que seremos, será sempre necessário conhecer e discutir quem fomos, e alunos (as), professores e professoras de cursos de gastronomia estão fazendo sua parte. Hoje os trabalhos acadêmicos das faculdades pelo país estão transformando esses homens e mulheres em biógrafos do seu tempo, historiadores do seu povo, criando através das linhas escritas, vínculos de responsabilidade e pertencimento.

Os resultados

E foi justamente numa reunião de trabalhos acadêmicos que um lindo livro será publicado pelo Instituto Federal Farroupilha, campus São Borja. Pesquisadores e orientadores se juntaram e se tornam hoje personagens importantes da literatura gastronômica nacional. Os capítulos deste volume são originários das apresentações dos resumos expandidos que foram apresentados na II Semana Acadêmica da Gastronomia (2017) do Instituto. Dos 36 trabalhos submetidos, foram selecionados 11 (através de notas dos avaliadores) e estes se transformaram em artigos completos que perfazem os capítulos deste livro intitulado Alimentação e Sociedade: antigos hábitos e novos sabores.

Em uma linda surpresa fui convidado para escrever o prefácio deste volume, além de ter a oportunidade de ministrar uma palestra para as turmas e ainda ter a honra de cozinhar para eles. Esse artigo começou a ser escrito em um avião indo para o sul do Brasil, numa viagem de descobertas e abraços sinceros. Entre panelas e palavras, celebrei nesta viagem a transformação e maturidade da nossa gastronomia! Gostaria então de terminar, deixando as cuidadosas palavras que reuni para presentear os autores deste volume e também incentivar novos escritores e escritoras que transitam nesta completude da biblioteca com a cozinha.

  

APRESENTAÇÃO

O ser humano sempre teve por essência o registro de suas descobertas. Desde os primórdios, inscrições rupestres evidenciaram como nossa espécie entendeu a importância da comunicação, observação e investigação. Contudo, vestígios alimentares, comumente encontrados na história dos povos em efêmeras representações orais, acabam se perdendo ao longo do tempo. E é justamente nesta realidade que se encontra o valor dos estudiosos da gastronomia. Homens e mulheres que se tornam verdadeiros biógrafos de uma parcela importante da sociedade.

Atualmente, a pesquisa acadêmica pode ser considerada uma das formas mais precisas de disseminação do conhecimento humano, pois percorre ritos e regras que garantem qualidade para o leitor. Contudo, além desta característica qualitativa, estes estudos destacam os profundos traços da gentileza humana. A cada trabalho se encontra a vontade de perpetuar ideias e contribuir com (r)evoluções. Neste mundo acadêmico, que ainda vem sendo descoberto pela Gastronomia, se destacam pesquisadores (as) que percebem na incompletude de seus estudos, pontos de partida para mudanças de paradigmas, através de novos conhecimentos, que terão por base justamente os resultados de análises.

A cada página deste livro, vocês terão a oportunidade de encontrar orientadores (as) e pesquisadores (as) que fazem parte de um distinto coletivo de apaixonados pela Gastronomia no seu maior espectro. Para além das questões práticas, estudar e divulgar conhecimento acerca de descobertas e pesquisas na nossa área, é reafirmar que estudar gastronomia é um ato político, social e agrário. Não há mais espaço para percepção de que esta área se limita a meros prazeres sensoriais. Ao ler estes trabalhos e aceitar a honra de escrever essas linhas, reafirmo o respeito, admiração e carinho pelos(as) autores e autoras, de cada capítulo, que hoje perfazem um seleto grupo de desbravadores(as) da gastronomia acadêmica. Ainda somos poucos, mas em breve o mundo entenderá nossa importância.

Que esta compilação tão notável e necessária não reflita o fim de uma jornada, e sim o seu início. Este volume hoje se transforma em uma importante e eterna fonte de pesquisa e inspiração para estudantes e professores(as)!  Parafraseando o mestre Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo.”

Gustavo Guterman

2 comentários

  1. Parabéns! Fantástico! Muito sucesso nesse reconhecimento a nossa fabulosa cozinha. Nesses dias estou escrevendo um ante projeto para concorrer a um mestrado onde tento encaixar a Gastronomia na linha de pesquisa exigida – Administração econtroladoria . A escrita desse artigo me motivou e muito a dar continuidade. Muito obrigado, boa sorte! 

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