Gastronomia, mostra a tua cara!

“Não me convidaram pra essa festa pobre
Que os homens armaram pra me convencer
A pagar sem ver toda essa droga”

A inerente necessidade da alimentação torna o assunto multidisciplinar, já que interfere direta e indiretamente em todas os setores sociais. Por acreditar nisso, associar então o verso de uma música, assim como qualquer outro assunto a alimentação, é para mim muito fácil. Desde os tempos de reis e rainhas, ter comida significou ter poder, e, depois que resolvemos a questão da conservação e da produção de alimentos, este poder se manteve, saindo de dentro de castelos e indo para escritórios que ficam em altos arranha céus. Estes escritórios são ocupados por pessoas que basicamente se preocupam em como convencer as populações a comerem comidas inventadas. Dedicam seus tempos arquitetando pensamentos estratégicos para fazerem pessoas acreditarem que elas têm soberania e poder de escolha, e, que por isso, podem pagar por toda e qualquer droga que estiverem nas prateleiras.

É sempre muito perigoso conhecer os dois lados de uma história. Muito mais fácil dominar os pensamentos, e, se estiverem distraídos e ao mesmo tempo concentrados em somente uma trilha, tudo fica parecendo exatamente o que deve parecer. Então, equipes formadas por estudiosos do consumo e do marketing, especialistas em nossos comportamentos hedonistas, se tornam os verdadeiros chefes de cozinha, sobrepondo toda a ordem de cultura, identidade, linguagem ou qualquer outra coisa sobre o assunto, que na verdade consideram o suprassumo da pieguice. Dão um jeito de aparecer em todos os lugares: out doors, patrocínios, rádio, televisão, redes sociais, mensagens subliminares, praticando exatamente o que penso: tudo tem relação com a comida.

“Não me elegeram chefe de nada”

Quando penso nisso, tenho então vontade de sair pelas ruas cantando: Gastronomia, mostra a sua cara! Cozinheiras e cozinheiros, trabalham feito loucos, todos os dias da semana, uma média de 15 horas por dia, deixam de ter vida social, ficam irritados, atendem exigências dos mais mimados clientes, endividados, comem mal e cozinham o que o mercado quer. Usam nomes afrancesados e americanizados, porque acham mais comercial. Cozinham de graça para aquela celebridade, que tem muito mais dinheiro do que eles, porque é isso que vai dar prestigio para a comida. Esperam ansiosos pela nomeação de prêmios, porque não interessa se a comida deles é boa ou não, e sim, quantos e quais prêmios ganhou. Ou seja, o capital humano gastronômico é tudo, menos humano mesmo. A governança alimentar, pode estar em qualquer outro lugar, desde que não seja na cozinha. As pessoas são loucas por manobristas, fotos, cadeiras estilosas, copos de cristais, drinks circenses, realitys e tudo mais que não tem nada a ver comida, e, procuram por isso, mas nem tanto pelo gosto do alimento. Vão para outros países, pagam por um prato valores estratosféricos, e quando voltam para casa, se gabam, sem nem conhecer suas próprias culturas.

Quem estuda comida, se dedica a ela e treina como um esportista de alta performance, sem parar e cada vez mais, mas não são chefes de nada! Alguns inclusive, perdem seus tempos gritando e ofendendo suas equipes, achando que pelo menos nessa hora, exercem alguma autoridade, mas nem isso.

“Brasil, qual é teu negócio
O nome do teu sócio”

Ouço e penso ao mesmo tempo neste novo momento gastronômico. A televisão diz que as pessoas estão mais interessadas e preocupadas com a origem dos alimentos. Os agrotóxicos estão deixando todos desconfiados e as dietas alimentares restritivas estão criando novos tipos de alimentos. A gastronomia de certa forma está sendo percebida dentro da sua multidisciplinaridade. Falam dela como ferramenta social, educacional, cultural, econômica, inovadora, turística, criativa e ambientalista. Mas não tem jeito, como em tudo na vida, tem os oportunistas. Apareceu um tipo de gente especialista no assunto, sem nunca ter estudado. Falam de uma necessidade de simplificação gramatica, para propor uma maior compreensão, mas na verdade isso vem mesmo é da falta do próprio conhecimento. Empresas, que são especialistas em encontrar “oportunidades”, e praticam seus oportunismos, sem um mínimo de vergonha na cara, utilizando os jargões das maneiras mais aproveitadoras possíveis. Gastronomia social, valorização cultural, comida de verdade, cozinha é amor, comida de afeto e mais um monte de outros termos, que no início foram utilizados por chefes de cozinha bem-intencionados e hoje são usados por toda ordem de empresas e profissionais, aqueles mesmo dos arranhas céus e escritórios bonitos. Imagino eles, dando gargalhadas, comprando empresas pequenas para incorporar em suas holdings e criando campanhas publicitarias cheias de imagens de boas intenções e esquecendo de toda a maldade e contaminação que eles fizeram até aqui. São sócios das mentiras dos rótulos e dizem que tem as maiores das boas intenções alimentares para trazerem felicidade e saúde para as pessoas.

“Brasil mostra tua cara
Quero ver quem paga pra agente ficar assim
Brasil qual e teu negócio”

A brasilidade alimentar é uma mistura de intervenções de várias culturas e, portanto, temos uma tênue linha entre a verdadeira boa intenção e a apropriação cultural oportunista. Gostaria de verdade que todas as pessoas envolvidas com a alimentação, percebessem a grandiosidade e a potência do assunto, e se entregassem para além de seus egos. Que entendessem que a gastronomia é maior do que uma autoria, que ela é coletiva e que várias pessoas ao mesmo tempo, pensam a mesma coisa. Anseio pelo dia em que os engravatados dos commodities alimentares, percebam que gastronomia é social, de raiz, de fato e de personalidade, e por isso, um negócio não pode ser plástico e seguidor das regras ultramodernas empresarias. Que termos internacionais, não podem aparecer para substituir termos culturais, gemidos de comida boa e emoções sensoriais. Não é uma coisa meramente nostálgica. Ao contrário, é muito atual e muito efervescente. E, portanto, é importante que todos mostrem sua cara. Que todos sejam de verdade como as comidas. E que todos entendam, que comida é maior do que qualquer negócio.

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