Como Auguste se transformou em Escoffier?

É inegável o respeito que profissionais da gastronomia nutrem por esta figura histórica, que foi precursor de todo o processo de produção da cozinha profissional como conhecemos.  Estabelecida por especializações de cada cozinheiro que resultam em um cardápio variado e com uma infraestrutura capaz de atender uma quantidade expressiva de clientes, uma das contribuições mais importantes que Escoffier deu foi a organização e sistematização das brigadas de cozinha. Definida através da visão de seu contemporâneo, Henry Ford, primeiro empresário a aplicar o processo industrial de montagem em série.

Ford estabeleceu um método que possibilitava uma produção de automóveis em larga escala (em menor tempo) e a um menor custo. Tal método é replicado até hoje nos grandes pátios industriais  em todo mundo, o famoso método fordista.  Um filme interessante que aborda o fordismo é “Tempos Modernos”, produzido e estrelado por Charles Chaplin. O filme faz uma crítica ao sistema de produção em série, além de mostrar a enfraquecida economia norte-americana após a crise econômica de 1929.

INFÂNCIA 

Nascido em Nice (quinta cidade mais populosa da França) em 28 de outubro de 1846, Auguste entrou na cozinha com 12 anos de idade! E por seis anos ajudou seu tio no Le Restaurant Francais em sua cidade natal. O restaurante permaneceu aberto por mais de 50 anos, fechando suas portas somente em 1910. Com 19 anos, sabendo que o mundo da gastronomia girava em torno da Cidade Luz, se mudou para Paris.  O termo Cidade Luz se tornou uma denominação mundial para a linda capital francesa, pois durante séculos as mentes mais iluminadas nas diversas vertentes eram atraídas para Paris como os insetos em volta da lâmpada! Pintores, escultores, arquitetos, músicos, bailarinos, artistas de todo o mundo mudaram para Paris, que se tornou o maior centro de artes do mundo. Não é a toa que Van Gogh, Picasso, Santos Dumont, Chopin, e Escoffier, foram para lá. E foi lá que conseguiu uma vaga como ajudante de cozinha.

Porém, como muitos cozinheiros e cozinheiras excepcionais, com quem tive o prazer de cozinhar, Auguste não teve a cozinha como seu sonho profissional, quando ainda jovem pensava em seu futuro. Contudo dizia que embora de início não tivesse pretendido entrar nesta profissão, uma vez na cozinha, trabalharia de maneira tal que se destacaria, e faria o melhor que pudesse para elevar novamente o prestígio do chef de cozinha!  E foi na capital que este cozinheiro sonhador conseguiu se aproximar de figuras ilustres (lordes, reis, imperadores), que o impulsionariam ao sucesso mais tarde.

A GUERRA

Foi por conta de uma guerra envolvendo a França contra um conjunto de estados germânicos liderados pela Prússia (Guerra Franco Prussiana – que se desenrolou entre 1870 e 1871 e tinha por objetivo unificar a Alemanha) que o jovem Escoffier entrou para o exército. Por questões adversas acabou se tornando cozinheiro de brigada, o que iria ser fundamental para seu futuro profissional. Foi capaz de confeccionar refeições improvisadas no meio do campo de batalha, literalmente sob o fogo inimigo, enfrentando a escassez dos suprimentos básicos, como o sal. Esses momentos de extremos, durante o conflito armado, também o levaram a refletir e alterar profundamente as técnicas para enlatar carnes, vegetais e molhos. Tais estudos tiveram por base os escritos do também cozinheiro francês Nicolas Appert, 75 anos antes.

Em 1795, Napoleão encorajou os cientistas e pesquisadores da época (12 mil francos de encorajamento) a estudarem formas que pudessem conservar alimentos. Em 1809, Appert apresentou seus estudos a Bonaparte e um ano depois lançou “O Livro de Utilidades Domésticas; ou a Arte de Preservar Substâncias Animais e Vegetais por Muitos Anos”.
Apesar de nitidamente ser horrível em dar nomes a livros, com este, Nicolas mudou a história da alimentação. A técnica que apresentava no livro, tinha por base o uso de jarros de vidro tampados com rolhas e selados com cera, que eram mantidos em água fervente para preservação de sopas, sucos, laticínios e doces (o processo de esterilização, desenvolvido pelo químico francês, Louis Pasteur, conhecido como pasteurização só foi desenvolvido 55 anos depois!). Algum tempo após seu lançamento, o livro chegou às mãos do comerciante inglês Peter Durand. Então em 1810, Durand patenteou o uso de recipientes revestidos com estanho (precursor dos enlatados que conhecemos hoje) além das embalagens de vidro utilizadas por Appert. Em 1815, os soldados franceses e britânicos já se alimentavam com enlatados.

O Tratado de Frankfurt, assinado a 10 de maio de 1871, pois fim ao conflito Franco Prussiano. Porém tal tratado impôs uma humilhante derrota à França, pois esta perdeu parte das províncias de Alsácia e Lorena (além de demarcar o fim do sistema monárquico na França).
Mas a situação foi mais complicada para Auguste. Ele havia sido capturado por um dos destacamentos militares da então Alemanha. Escoffier então foi confinado com outros 250 prisioneiros no campo Mayence na Alemanha, com bastante desconforto e pouquíssima comida. Contudo, como conhecia pessoas de influência, conseguiu sair de lá para trabalhar num cassino em Wiesbaden.

Escoffier regressou à França tempos depois, em uma Paris sitiada onde ratos eram vendidos nos mercados por um franco a unidade. Triste realidade decorrente da guerra, uma época em que zoológicos haviam se transformado em fornecedores de carnes exóticas para os restaurantes. A população morria de desnutrição, intoxicação alimentar e pneumonia. Sobre as experiências de Auguste na Guerra Franco-Prussiana, ele nunca relatou suas dificuldades, mas sempre ressaltou a dos seus compatriotas em inúmeros relatos.

GASTRONOMIA 

Após um difícil período pós-guerra, em 1878 Escoffier abriu o seu próprio restaurante em Cannes no sul da França, O Faisão de Ouro (Le Faisan d’Or). Pouco tempo depois se casou Delphine Daffis. Há relatos que afirmam que o casamento foi resultado da aposta de um jogo de sinuca com seu então amigo (e posteriormente sogro) Paul Daffis, que colocou a mão de sua filha a prêmio. Da união nasceram dois filhos e uma filha: Paul, Daniel e Germaine. Já casados foram para o Monte Carlo, em Mônaco, também ao sul da França. Em meados de 1880, o hotel comandado por César Ritz perderia seu chefe de cozinha para um restaurante parisiense. E foi assim que estes dois mestres se encontraram. A amizade destes dois profissionais e suas observações sobre o trabalho do outro, os levaram a significantes mudanças para o desenvolvimento e organização da gastronomia e da hotelaria.

Ritz (considerado o pai da hotelaria moderna) o colocaria novamente no rumo do seu título, “rei dos chefs e chef dos reis”. Essa amizade levou Escoffier a ser conhecido em todo mundo com sua Cozinha Francesa Moderna. César começou como um camareiro de hotel suíço no vilarejo de  Swiss Valais . Rapidamente se tornou chefe dos garçons e posteriormente gerente de hotel.

Tendo também por base os ensinamentos de seu antecessor, o famoso cozinheiro parisiense Marie-Antoine Carême (1783 – 1833), Auguste aprimorou o sistema de apresentação dos pratos, desenvolvida por Antoine e os simplificou, os tornando práticos e atrativos.  Reduziu cardápios, e apresentou jantares em etapas. Estas mudanças seriam replicadas mundo a fora! Essa amizade que definiria os rumos da gastronomia e hotelaria moderna teve seus altos e baixos, mas com um saldo amplamente positivo. Atuou na cozinha profissional até 1920, se aposentando com 74 anos.  Sua esposa Delphine adoeceu e faleceu em 6 de fevereiro 1935. Seis dias depois Auguste Escoffier, também faleceu, aos 89 anos.

LEGADO

Escoffier deixou grandes legados, como um sistema de organização das brigadas de cozinha, que foram divididas em estações de trabalho (praças) que tem por base o sistema de linha de produção fordista com o caráter de execução taylorista (hoje questionado por ter como premissa a produtividade do empregado especializado e sem conhecimento do produto final). Em uma entrevista ele coloca em cheque justamente esta contradição do taylorismo na gastronomia ao afirmar; “Um chef não pode dirigir trabalhos que ele mesmo não saiba executar. (…) Só quem faz da cozinha seu supremo interesse, dedicando-lhe anos de estudo e trabalho, torna-se um chef.” Ou seja, fica nítido que apesar da especialização das praças de trabalho, é imprescindível, para o aprimoramento do profissional, seu vasto conhecimento das bases técnicas nas diferentes áreas de uma cozinha.

Estabeleceu os primeiros passos do menu degustação como conhecemos, e nos deixou de herança uma vasta literatura com receitas e técnicas utilizadas na gastronomia profissional, nos dias atuais. Conhecendo a história deste grande profissional, é possível entender que a gastronomia precisa estar em eterno estado de evolução, tanto em suas técnicas, quanto na forma como ela é apresentada e representada. Por isso se torna imprescindível levantarmos todas as discussões necessárias para que a cozinha seja sempre um espaço evolutivo e para TODOS.

Dito isso se torna impreterível não esquecer como Escoffier se ocupou de infelizmente afastar as mulheres da cozinha profissional.

Este foi o discurso proferido por Auguste em 1890, numa visita aos Estados Unidos. (discurso que aparece reproduzido no Annual Report of the Universal Food and Cookery Association, publicação londrina de 1895, sob o título sugestivo de “Why Men Make the Best Cooks”):

“Cozinhar é indubitavelmente uma arte superior, e um chef competente é tão artista em seu ramo de trabalho quanto um pintor ou escultor. Há tantas diferenças entre bons e maus cozinheiros quanto entre uma sinfonia executada por um grande mestre instrumentista e uma melodia tocada num realejo (…). Nas tarefas domésticas é muito difícil encontrarmos um homem se igualando ou excedendo uma mulher; mas cozinhar transcende um mero afazer doméstico, trata-se, como eu disse antes, de uma arte superior. A razão pela qual na culinária os louros são “apenas masculinos” não é difícil de encontrar. Não é porque o homem seja mais epicurista do que a mulher. Isto, mesmo que sustentado por mulheres, não é verdade. A mulher é tão fastidiosa sobre sua comida quanto o homem – o homem comum -, o que se observa no que ambos cozinham. O que acontece é que o homem é mais rigoroso no seu trabalho, e o rigor está na raiz de tudo o que é bom, como em tudo o mais. Um homem é mais atento sobre os vários detalhes que são necessários para produzir um prato verdadeiramente perfeito… Para ele nenhum detalhe é mais importante do que outro.

Uma mulher, por outro lado, irá trabalhar com o que tem à mão. Isso é muito agradável e generoso de sua parte, sem dúvida, mas eventualmente estraga a sua comida e o prato não será um sucesso. Uma das principais faltas de uma mulher é sua ausência de atenção aos menores detalhes – a quantidade exata de especiarias, o condimento mais adequado a cada prato; e essa é uma das principais razões pelas quais seus pratos parecem pálidos diante daqueles dos homens, que fazem os pratos mais adequados a cada ocasião.

Para um chef, seu trabalho é uma eterna alegria, e ele inventa novos pratos com tanto orgulho e carinho quanto um modista ou um chapeleiro criam novos vestidos ou chapéus; ele estuda cuidadosamente cada detalhe insignificante de cada sabor em separado antes de enviar sua obra prima culinária para os seus clientes. Quando as mulheres aprenderem que nenhuma insignificância é demasiadamente pequena para ser desprezada, então iremos encontrá-las à frente das cozinhas dos clubes gourmets e dos hotéis; mas até então esses serão lugares nos quais, certamente, o homem reinará absoluto. ”

Que tenhamos sabedoria de aproveitarmos o melhor dos ensinamentos de nossos mestres e a inteligência de jamais repetir seus erros. Só assim conseguiremos ser melhores. Sempre.

 

1 comentário

  1. FORMIDÁVEL O ARTIGO. ESCOFFIER DESDE CRIANÇA, NA ÉPOCA DE ESCOLA, APRESENTOU DONS PARA ARTES E PINTURAS. GRAÇAS A SEU PAI QUE O TORNOU COZINHEIRO (OBRIGADO) SE TORNOU O ARTISTA DA GASTRONOMIA. VIVA ESCOFFIER E VIVA A GASTRONOMIA.

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