Uma lenda chamada Ifood

DE UNICORNIO DAS STARTUPS A ASSASSINA DE MICRO-EMPRESAS
Por três anos, eu trabalhei em um restaurante que foi por três anos seguidos, eleito o melhor da cidade. A cada prêmio, éramos assediados pelos mais variados tipos de fornecedores, agências, registradores de marcas e empresas querendo propor parcerias sem pé nem cabeça. Era difícil desviar de alguns pedidos. Ficávamos sempre confusos sobre o quanto ia custar um “não”, porque em geral eram empresas grandes que queriam estar no melhor lugar da cidade para comer e tirar fotos. Uma vez ligaram, querendo um jantar para 15 pessoas, em troca de trazer um artista famoso para o restaurante. Olhávamos um para o outro pensando; “como é que se pede carona a taxista?”
Como é que se pede, 15 lugares gratuitos, dentro de uma realidade de 60 cadeiras, ou seja 25% do salão. E, da onde veio essa coisa de achar que porque aquela pessoa, que apesar de ser famosa, é uma pessoa, é capaz de chancelar para uma cidade inteira, o sabor de uma comida?

Queríamos trabalhar e fazer boa comida para todas as pessoas que entrassem lá, independentemente de quem fossem. Depois do primeiro não, a coragem nos mostrou que era possível e recebemos incontáveis pessoas famosas, que foram bem-vindas e tratadas como clientes pagantes e ponto. As ideias mirabolantes foram se modificando.

Uma vez, uma revista veio propor lançar uma de suas edições no restaurante. Queria um coquetel totalmente gratuito, em troca de um anuncio na revista e de uma entrevista com o chefe. Perguntei quanto era um anuncio e o valor me deixou sem ar. Ou seja, a proposta era a gente dar a festa para ela e ainda ficar com uma dívida bastante expressiva, já que a diferença deveria ser paga. Neste dia eu perdi a elegância. Mas este não é o motivo deste artigo. Quer dizer, a revista não é o motivo do texto, e sim, as propostas mirabolantes. Vamos a que talvez tenha sido a maior de todas.

NOVAS POSSIBILIDADES X A PROPOSTA

Eu estava querendo novos negócios. Queria criar outras operações fora do restaurante, para contribuir com o equilíbrio financeiro. Propus ao chefe que a gente criasse um cardápio para entrega. Era praticamente impossível entregar o cardápio praticado até então. Os pratos, muito elaborados e bonitos, absolutamente não combinavam com embalagens plásticas ou de isopor, e isso exigiria que ele fizesse um cardápio exclusivo para este tipo de serviço. O chefe não aceitava a ideia da entrega. Dizia que andava na rua, vendo aquelas bicicletas, as pessoas suadas, se arriscando no transito para ganhar centavos, balançando seus isopores e tudo isso não combinava com nada que ele tinha como proposito. Mas eu estava determinada a encontrar soluções, até as coisas se encaixarem. Comecei a fazer pesquisas sobre o assunto, ligar para pessoas que eu confiava nas informações e tentar ficar sabida sobre essa área que eu não operacionalizava a tanto tempo.

AS REGRAS DO JOGO

Até que um dia, recebi uma ligação no telefone fixo: – Aqui é fulana de tal do IFOOD e eu queria falar com o chefe. Ele (o chefe), sempre me disse: eu cuido da comida. Meu lugar é a cozinha e o teu lugar é o escritório. Então, não tem o porquê eu falar com pessoas sobre gestão. Respondi então para a simpática e entusiasmada moça do outro lado, que ela podia falar comigo mesmo. Ela: – eu sou responsável por clientes especiais do IFOOD e vocês foram apontados como o restaurante mais pedido para ter deliverrrryyy (sic) e eu gostaria de te encontrar para conversarmos.

Em tempos anteriores, eu teria terminado a ligação ali mesmo, mas como tinha outros interesses, resolvi marcar. Ela pediu meu telefone e eu dei, sabendo que seriam dias difíceis, já que uma das estratégias é o assédio. Dito e feito. Até o dia da reunião, quase todos os dias eu recebia uma ligação. Para confirmar, para informar, para reconfirmar, para tentar trocar a data. Até que chegou o dia. Deixei ela falar. Ficou longos minutos parabenizando pelo trabalho. Dizendo que nunca tinha ido ao restaurante, mas que iria com certeza. Que estava espantada com a quantidade de clientes pedindo o restaurante na lista deles. De acordo com ela, quando um cliente não encontra o restaurante na lista, o aplicativo dá a opção de ele mencionar o estabelecimento procurado como sugestão. Eu fiquei me perguntando porque isso nunca aconteceu comigo, mas sempre acho que não sou parâmetro para as “coisas do momento” e deixei pra lá. E a moça, muito bonita, jovem, empenhada, bem arrumada, com todos os requisitos típicos do padrão de beleza empresarial, não parava de falar, falar.

TAXAS

Até que chegou uma hora que eu perguntei: vocês continuam praticando a taxa de 13%? Ela respondeu falando rápido feito máquina: – sim, mas também podemos te ofertar o motoqueiro, sem custo e responsabilidade nenhuma para você, com a taxa de 27%. E também temos várias novidades de inteligência para o aplicativo. Você pode definir quais são os produtos e em quais horas você quer ofertar. Isso vai te dar mais oportunidades de negócio, porque você pode fazer ofertas daquele produto que está parado ou que você conseguiu a um baixo custo. Você pode aproveitar os momentos de menor movimento e usar o aplicativo para ser seu grande divulgador e blá, blá, blá. Não parava de falar. Perguntei quem eram os clientes da região e ela falou de uns dois. Pegou os dois maiores, mas que não tem relação com o produto que a gente ofertava. Fez questão de dizer, que o treinamento era por conta dela, e que poderíamos chama-la sempre que preciso. Percebi que conforme a conversa foi evoluindo, ela foi notando que eu não era muito impressionável.

REALIDADE NÃO DITA

Então ela começou a usar alguns termos técnicos sobre gestão, mas sem saber exatamente do que estava falando. Falou de controle do CMV – custo da mercadoria vendida – para escolher os produtos que fariam parte das promoções. Falou de RA – rotatividade de assentos/taxa de ocupação para tentar me convencer a usar a ferramenta nos horários menos procurados. Mas a cada resposta dela, eu fazia mais três perguntas. Queria saber como eram feitas as estatísticas, como era feito o ranqueamento, se tinham regras para as promoções. Ao final, fui sincera e disse que somente a tinha atendido, por conta do meu interesse em fazer aquele novo negócio, mas que eu sabia, que com eles seria impossível.

Fiz questão de explicar porque. Dei aula mesmo. Expliquei todos os parâmetros de custos, os índices de controle e os chamei de irresponsáveis por convencer as pessoas que a tal taxa de 13% era menor do que o que se gasta com marketing. Perguntei se ela poderia me mandar a estatística das localizações dos clientes que pediam nossos produtos. Disse a ela que queria analisar a questão do tempo de entrega em relação a qualidade do nosso produto. Ela foi embora. Agradeceu o que ela chamou de “aula que eu dei a ela”. Disse que eu a tinha feito repensar como falar com os clientes. Agradeceu, ficou de mandar o relatório, nunca mandou e desapareceu, mesmo eu entrando em contato depois para solicitar o relatório que me prometeu, mas nunca veio.

IFOOD

Entendo que ela desapareceu porque percebeu que não éramos clientes para ela. Não por conta do nosso produto. Mas pelo fato, de não termos caído na lábia dela. O IFOOD é considerado o unicórnio das startups – título dado a empresas desta modalidade que valem mais de R$ 1 bilhão. Foi fundada em 2011, com a genial ideia de “ajudar” as duas pontas de uma cadeia. Fazer o marketing para bares e restaurantes e oferecer para os clientes variados produtos de qualidade, dentro do tempo que eles escolherem. Sempre falo do IFOOD em minhas aulas. Sim, a ideia inicial, é uma solução bastante interessante e necessária. Mas tudo o que essa empresa conseguiu fazer além de crescer, foi com certeza matar os seus próprios clientes. Hoje em dia é absolutamente comum ouvir empresários dizerem que não é possível ficar sem este serviço. Vejo empresas inclusive, abrindo para trabalhar com essa empresa, achando que ela é parceira de alguém.

Ontem, (09/02/2020), circulou na internet uma matéria que além de dar vários exemplos, de empresas que fecharam, ainda menciona a pratica de dumping por parte da IFOOD (https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2020/02/como-apps-de-entrega-estao-levando-pequenos-restaurantes-falencia.html) . Para quem, não sabe, dumping é a venda de produtos a um preço inferior ao do mercado, com vários objetivos, mas principalmente o de eliminar concorrentes. Sendo que neste caso, a IFOOD está querendo eliminar seus próprios parceiros, que são os restaurantes. Doido, né?

IMPORTÂNCIA DA GESTÃO

No entanto, o mais doido disso tudo, realmente, é a insistência do mercado de alimentos e bebidas em continuar a operar sem uma gestão preparada para lidar com as dificuldades de um negócio gastronômico. Impressionante é nenhum empresário deste ramo, ter sido capaz de se articular, para lutar por melhores condições tributárias para este tipo de negócio que apesar de tratar de uma necessidade primeira, é considerado de alto risco e fica sempre a mercê de tudo, desde se vai chover ou não, até a quantidade de feriados do ano. Hoje, 10/02/2020 teve uma chuva torrencial em São Paulo. Recebi várias notícias de empreendimentos que perderam tudo, por conta disso. Você pode achar que foi uma fatalidade, mas mesmo o estabelecimento que não foi inundado, não conseguiu trabalhar hoje. Porque nem o fornecedor e nem o cliente chegou por conta de um acontecimento alheio ao controle do empresário, que poderia estar esperando o faturamento de hoje para completar o valor de um boleto.

Loucura , é o setor ser tão desorganizado, que permitiu e alimentou uma empresa como o IFOOD, para que ela, os matasse com as próprias mãos. E isso acontecer simplesmente porque ele não fez conta. Inexplicável, é um empresário se preocupar se o guardanapo de linho da mesa está bem passado, e desconhecer todo o qualquer índice de controle para a gestão de um negócio gastronômico. Se não fossem todos doidos, o IFOOD tinha recebido um grande, sonoro e embasado não para a primeira vez que ofereceu um serviço a uma taxa de 13%, do jeito que eu falei com a moça bonita do departamento comercial de clientes especiais.

Amigas e amigos, se não forem capazes de fazer uma boa gestão para seu futuro negócio gastronômico, não abram! Se a vontade for muita, se capacitem primeiro, porque sem gestão especializada, não é possível.

3 comentários

  1. Vanessa e Gustavo, tudo bom?
    O artigo de vocês é música para os meus ouvidos.
    De fato a falta de informação e formação no setor é terrível, mas compreensível e uma realidade que devemos lutar para melhorar. Esse fator aliado à desorganização do setor faz com que não exista resistência para brigar e falar: “Não, isso não funciona para o meu negócio! Se você quer entrar aqui precisamos chegar em condições mais interessantes.”.
    Eu acredito que essas plataformas são de fato veículos interessantes e que é a nova forma de consumir das pessoas. Acredito que podemos bater de frente e chegar a uma matriz mais bacana para os restaurantes.
    Faz algum tempo tenho sugerido a colegas para realizarmos uma ação aos moldes do “Dia da Gasolina Sem Imposto”, no qual empresários donos de postos se mobilizam para bancar o imposto do combustível vendido naquele dia. Minha sugestão foi realizar “O dia sem app”!
    Ninguém se mexeu!
    Pois bem, com a publicação da matéria sobre as plataformas de uma colega do nosso grupo do Sebrae eu tomei a iniciativa de abrir um grupo e capitanear esse movimento.
    Convido vocês a entrar no chat e participar da nossa vídeo conferência hoje (11/02) às 21h para discutirmos as mudanças que são importantes para que esse modelo seja sustentável.
    Segue o link para você entrar:
    https://chat.whatsapp.com/BXaMQUkgv99EqPHR7pHNmG

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  2. Professores, oq vocês pensam sobre restaurantes que repassam esta taxa para o cliente como já é feito com os tributos?

    Ex.: preço normal 15 reais, preço Ifood 20,55 reais.

    Obrigado pelo conhecimento compartilhado, o último parágrafo é uma verdade dura, mas necessária.

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