A vida e a obra de Paul Bocuse

Já pensaram naqueles cozinheiros e cozinheiras que estão nascendo hoje? Aqueles meninos e meninas que irão ocupar o lugar de vocês nas cozinhas que hoje vocês habitam? Talvez eles não irão saber proporcionar o vinte de janeiro de dois mil e dezoito. O dia em que o mundo parou para homenagear a passagem de um mestre chamado Paul Bocuse.

É possível que eles enxerguem esta figura emblemática como um ponto a ser estudado na história da gastronomia, como tantos outros cozinheiros e cozinheiras que escreveram a trajetória de nossa profissão até aqui. Mas Bocuse foi mais do que um cozinheiro forjado em uma França pós-guerra, que se reerguia, impulsionada por uma forte industrialização que fazia paralelo com as mazelas de populações dizimadas pela barbárie de um conflito mundial…. Hoje é possível afirmar que a gastronomia mundial moderna foi dividida em dois períodos distintos. Antes e depois de Bocuse.

Infância

Ele nasceu em 11 de fevereiro de 1926 e partiu quase 92 anos depois, no mesmo quarto, em cima de seu restaurante no leste da França, no pequeno município de Collonges-au-Mont-d’Or, margeado pelo rio Saône, próximo à Lyon.  Dois anos antes de seu nascimento, seu avô tinha um restaurante chamado BOCUSE e, por questões adversas, viu-se obrigado a vender o lugar, assim como o direito ao uso do nome. Em 1938, seu pai abriu um restaurante próximo, mas não pode utilizar seu próprio sobrenome. Bocuse trabalhou incansavelmente para recuperar tudo que a família havia perdido no passado, porém, seu pai acabou por falecer em 1959, antes de Paul conseguir recuperar, em 1966, entre outros patrimônios, o antigo restaurante e o uso de seu próprio sobrenome. Mudou-se para a casa onde havia nascido e sido criado, e transformou o prédio em um dos ícones da gastronomia moderna, instalando na fachada do prédio orgulhosamente seu nome e sobrenome em um enorme letreiro (recuperado do antigo restaurante homônimo de seu avô).

“Há quem diga que eu tenho um ego exagerado. Na realidade, tive de recuperar a identidade da minha família. Você não pode imaginar o que é perder o seu nome”, desabafou Paul. E sobre a casa que sempre amou: “Esse é o meu lugar, quero estar próximo da minha cozinha”, afirmou Bocuse em uma entrevista concedida a Robert Halfoun, diretor executivo da revista Gula.

O início da vida na cozinha

Aos oito anos de idade, orientado pelo pai, preparou sua primeira refeição: um prato de rins de vitela. Lembra com carinho também do prato que aprendeu com sua mãe, um assado de vitela com purê. “Eu gostava de fazer um buraco no purê para colocar o molho do assado”, recordou em uma entrevista ao jornalista Roberto Dávilla. Aos 16 anos, Bocuse tornou-se ajudante de cozinheiro no Restaurant de La Soierie do chefe Claude Maret, um pequeno restaurante que tentava sobreviver em uma França em guerra e dependia do mercado negro para continuar seu funcionamento.

A Segunda Guerra Mundial

Com 18 anos, no auge da Segunda Guerra Mundial, Bocuse alistou-se voluntariamente na primeira divisão das Forças Francesas Livres do general Charles De Gaulle (entidade política e militar que participou na guerra contra a Alemanha nazista e a Itália fascista utilizando parte da frota e da Legião Estrangeira).  Durante um ataque nazista, foi gravemente baleado a 2 cm do coração, sendo tratado por soldados norte-americanos. Em seu tratamento, teve que ser submetido a inúmeras transfusões de sangue. Nesta mesma ocasião ganhou a tatuagem que levava no braço esquerdo, com a imagem de um galo, feita por um dos soldados americanos que lhe atenderam. A guerra teve um impacto duradouro no chefe. “A guerra forja a personalidade”, disse ele. “Você não tem mais a mesma ideia da vida”.

A volta à gastronomia

Aos 20 anos, após ser condecorado com a Croix de Guerre (importante condecoração militar francesa), voltou ao mundo da gastronomia. Iniciou seu aprendizado com Eugénie Brazier, a grande mentora da cozinha francesa moderna e a primeira mulher a receber seis estrelas no Guia Michelin. Eugénie o ensinou a cozinhar, a manter a horta, cuidar das vacas, e também a lavar roupa e engomar. (Eugénie merece um artigo só seu, que em breve será publicado).

Da esquerda para a direita: Paul Bocuse, Jean Vettard, Jean Vignard, Christian Bourillot, Roger Roucou, Paul Lacombe, Guy Thivard, Marius Vettard (escondido atrás de Eugénie Brazier).

Depois de um breve período no Lucas Carton de três estrelas em Paris, onde trabalhou ao lado dos irmãos Pierre e Jean Troisgros, Bocuse passou oito anos no La Pyramide em Vienne, restaurante do grande ícone da cozinha francesa, Fernand Point. “Naquela época, muitos restaurantes estavam fazendo o mesmo tipo de culinária à moda estilo Escoffier, com muitos molhos escondendo os ingredientes e os mesmos pratos noite após noite”, disse Bocuse ao jornal New York Times em 2007. “Point foi um perfeccionista que deu valor e credibilidade aos melhores ingredientes”.
Ao final da guerra, com países experimentando uma forte industrialização e avanços tecnológicos, cozinheiros franceses começaram a viajar o mundo, sendo um dos principais destinos, o Japão. Lá ensinavam a culinária francesa e aprendiam sobre a cultura e a gastronomia japonesa.  Com 30 anos, voltou ao restaurante, o então  Auberge du Pont de Collonge (ainda não havia recuperado o direito de utilizar seu próprio sobrenome),  ganhando a sua primeira estrela Michelin dois anos depois. Em 1960 ganhou sua segunda estrela em um restaurante que ostentava ainda toalhas de papel e talheres de aço inoxidável.

Nouvelle Cuisine

Impulsionado pelo crescimento da economia oriental e a intensificação da globalização no início da década de 70, nasceu um dos movimentos mais importantes da gastronomia moderna, a Nouvelle Cuisine Française, ou em bom português, a Nova Cozinha Francesa.

Foi em em 1969 que jornalistas do jornal francês Le Mond, Henri Gault e Christian Millau, inspirados pelo movimento Nouvelle Vague (uma nova estética de cinema criada na França, em 1958, como reação contrária às superproduções hollywoodianas da época, que reuniu jovens cineastas franceses como Truffaut e Godard) batizaram a então nova forma que jovens cozinheiros como BocuseAlain ChapelJean Pierre TroisgrosMichel GuérardRoger Vergé e Raymond Oliver apresentavam a cozinha francesa, com a influência do que viram pelo mundo. Nascia a Nouvelle Cuisine.

Motivados pelo que viram e experimentaram em visitas a países do Extremo Oriente, conceberam combinações incomuns de sabores e incessantes inovações que dependiam de um sólido domínio das técnicas clássicas. Assim os tradicionais, pesados e antigos processos de elaboração de molhos foram revistos. As porções foram reduzidas, aumentando o número de tempo (diferentes pratos) por refeição. Foram assim mantidas as características individuais de cada ingrediente ao invés de se pensar somente no contexto final do prato. Técnicas aprimoradas permitiram pratos com menor tempo de preparo e apresentações minimalistas, com cores vivas, diferentes texturas, alturas e aromas, possibilitando uma comida menos gordurosa, conservando seus valores nutricionais; que traçava um paralelo claro com a cozinha na qual o movimento se inspirara, a japonesa.

O legado

Em 1987 criou o Bocuse d’Or, considerado as olimpíadas da gastronomia. Um concurso internacional que se tornou uma grande vitrine para novos cozinheiros e cozinheiras em ascensão. E em 1990, preocupado com a formação de novos profissionais, criou também o Instituto Paul Bocuse, estabelecido em Lyon. Bocuse deixa, além de restaurantes e cafés espalhados por diferentes países, um legado de técnicas e receitas que serão reverenciados por incontáveis gerações. Muito antes de se falar em cadeia produtiva, Paul já trabalhava e incentivava pequenos produtores próximos do seu restaurante, expondo a responsabilidade de cozinheiras e cozinheiros pela cultura, natureza e economia local.  Talvez para nós brasileiros, sua maior herança tenha sido justamente essa paixão e orgulho pela sua cozinha, cultura e história. Estes são passos importantes para a construção do legado que queremos deixar para as próximas gerações.

Certa vez uma senhora aproximou-se dele, desmanchou-se em elogios e, ao se despedir, pediu seu cartão de visita. Então, num tom descontraído, o chefe respondeu “A madame queira me desculpar, eu não tenho cartão, mas meu nome está nos guias de culinária.”

World's top chefs gather en masse in white for funeral of Paul Bocuse, the  'pope' of French gastronomy
Centenas de chefs e admiradores participaram no dia 26/01/2018 em Lyon, na França, do funeral de Paul Bocuse, o “papa” da gastronomia, que morreu aos 91 anos.

Embora Bocuse quisesse uma cerimônia “simples”, em sua cidade natal de Collonges-au-Mont-d’Or, onde seu famoso restaurante três estrelas Michelin está localizado desde 1965, mais de 1.500 dos maiores chefs do mundo se reuniram, vestindo suas dólmãs brancas na catedral de Lyon, para homenagear Paul. Entre eles, os franceses Alain Ducasse, Joël Robuchon, Anne-Sophie Pic, Guy Savoy e Arnaud Donckele, o americano Thomas Keller, Daniel Boulud, de Nova York, e Hiroyuki Hiramatsu, à frente dos restaurantes de Bocuse no Japão.

“Quem veste uma dólmã precisa saber a responsabilidade que passa a ter cada vez que a coloca.” – PAUL BOCUSE (1926-2018)

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