O artigo que eu nunca quis escrever


Comecei a escrever esse artigo há 7 anos. Nunca finalizei. Afinal meu mentor ainda estava aqui e era uma referência viva, em plena expansão de ideias… Não voltei nestas linhas pois achava desleal escrever sobre uma força em movimento. No fundo, eu nunca quis terminar esse artigo, mas hoje não teve jeito.

Foi no dia 4 de março de 2009 que eu entrei em uma livraria com o dinheiro de todo um mês de trabalho, atrás do meu primeiro livro de Gastronomia. Eu não queria livros de receitas. Não fazia sentindo, eu queria entender melhor sobre o cozinheiro e não sobre a comida. Entre livros desproporcionais, com fotografias cinematográficas de pratos irreais e poucas palavras, uma lobada com o título COZINHA CONFIDENCIAL me chamou atenção.

E sem a menor cerimônia (no intervalo de um dia de dobra na cozinha, com a camisa suja, que usava por baixo da dólmã ), sentei ali mesmo, no chão da livraria enquanto clientes e funcionários me olhavam torto e devorei o PRIMEIRO PRATO e o SEGUNDO PRATO (título dos dois primeiros capítulos do livro). Não tive a menor dúvida que aquele seria o meu primeiro livro.

Bourdain naquele volume, fez algo que nenhum outro título daquela ou qualquer livraria havia me proporcionado; representou de forma fidedigna (por muitas vezes de forma bem mais fiel, do que digna…rs) a vida sofrida e extremamente feliz de cozinheiros e cozinheiras profissionais. Ele provou que escrever sobre a gastronomia não se resumia a receitas enfadonhas ou críticas pedantes. Era possível de forma ácida e prazerosa explicar para o mundo a vida daqueles piratas.

VIDA DE ANTHONY BORDAIN

Anthony Michael Bourdain nasceu em Nova York e cresceu em Nova Jersey. Orgulhava-se do seu gosto impecável para o rock, enquanto mal havia completado uma década de vida. Apesar de uma estrutura familiar boa, tinha nele uma revolva inexplicável. Nada fazia muito sentido. Em uma época onde todos os pais de amigos estavam se separando, morava em uma casa estável e feliz. Isso o aborrecia profundamente, pois via no desmoronar da vida dos amigos, uma liberdade inexplicável, baseada na displicência de pais em pé de guerra.

Sua mãe era editora de texto do New York Times e o pai trabalhava como empresário musical, o que explica muito do grande contador de história, com excelente gosto musical em quem Antony se transformaria. Mas sua profunda paixão ainda não havia sido descoberta. Seria descoberta no abrir de uma concha em uma viagem de férias com sua família.

OPÇÃO PELA GASTRONOMIA

“(…) aquele objeto reluzente, de aparência vagamente sexual, ainda gotejante e praticamente vivo. Peguei-o na mão, virei a concha na boca, conforme as instruções do agora sorridente Saint-Jour, e com uma mordida e uma chupada, engoli. Tinha gosto de água do mar…salmoura e carne…e também…de futuro. Tudo passou a ser diferente. Tudo.”

Ali naquela tarde, ao lado do mar, nascia o cozinheiro Anthony Bourdain. Poucos anos depois, aos 13 anos de idade, conseguiu seu primeiro emprego como lavador de pratos. Há dois anos em entrevista a uma rede de televisão americana, disse que encontrou significado na estrutura disciplinada do trabalho. “Eu era um lavador de pratos feliz. Mesmo achando que era uma grande brincadeira, sei que aprendi todas as lições importantes, todas as lições mais importantes da minha vida, como lavador de pratos.”.

Anthony Bourdain – SOHO (N.Y) em 1980 (24 anos)

Chegou a se matricular por dois anos em uma escola de Nova Iorque, mas abandou para se matricular no Instituto de Culinária Americano. Era um cozinheiro que esbanjava técnica. Se formou em 1978. Trabalhou em restaurantes pela cidade, até que em 1998 assumiu a chefia executiva do Bistrô Les Halles, no qual passou muitos anos com a barriga no fogão, até alcançar a chefia – como ele mesmo dizia nas primeiras folhas do seu livro- Afinal, As Receitas Do Les Halles. Nova York.

LIVROS

Então, entre as alucinantes noites de casa cheia e manhãs atrás de fornecedores dos melhores insumos, escrevia… Mesmo com o sucesso absoluto do pequeno restaurante, que se mantinha como um dos melhores da cidade (constantemente lotado), não foi com seu cardápio direto e extremamente saboroso que Bourdain foi reconhecido. O estrelato veio com um controverso, mas apaixonante artigo escrito para o Jornal The New Yorker em 1999 intitulado “Não coma antes de ler isto”, onde sem nenhuma pretensão, Antony descreveu escancaradamente todas as minúcias da vida em uma cozinha profissional e a vida de obscuros personagens que encontrou ao longo do caminho neste particular universo.

” Na América, a cozinha profissional é o último refúgio do desajustado. É um lugar para pessoas com passados ​​ruins encontrarem uma nova família (…) Eu entrei no negócio quando os cozinheiros ainda fumavam na linha e usavam faixas de cabeça.“

O sucesso do artigo foi tamanho que uma editora praticamente o intimou para escrever um livro. Seu primeiro editor em uma entrevista na época confessou que ao receber os primeiros rascunhos do livro “Eles vinham e eram tão sinceros e brutalmente engraçados. A voz era tão polida e tão crua – esse estranho paradoxo.”

Então ligou para o improvável escritor e afirmou categoricamente; “Se não fizermos disso um best-seller, não eu não mereço trabalhar nesta indústria”. Assim nascia uma das minhas maiores referências literárias. O indescritível COZINHA CONFIDENCIAL. O livro se tornou um best-seller instantâneo, o que mudou para sempre a vida de Antony.

PROGRAMA DE TELEVISÃO

Dali para a televisão foi um pulo. Incontáveis capítulos de séries maravilhosas… “Tony mudou o cenário da mídia alimentar”, disse Ed Levine, ex-colaborador do New York Times e fundador do SeriousEats.com. “Ele introduziu a humanidade e a verdadeira emoção e poesia na narrativa alimentar. Sua voz é insubstituível”.

Foram anos dedicados a conhecer pessoas, lugares e hábitos alimentares. Era visivelmente uma alma inquieta, alguém que ultrapassava as linhas editoriais de um programa ou livro de culinária. O mundo pelos seus olhos era sempre retratado de forma intensa. Seu fascínio mais profundo com as diversas culturas e a relação humana o tornava um singular. Falava o que pensava e sentia visceralmente a vida.

Um olhar mais atento à suas linhas e falas deixava claro o quanto ele acreditava que não havia nada mais político do que comida. Essa maturidade em abordar o cotidiano de um povo e seus hábitos alimentares (com suas dificuldades, tristezas e alegrias) talvez tenha sido seu maior legado para todos nós. Ele sabia que a comida jamais poderia ser mais importante que as pessoas em suas provocações escritas ou televisionadas.

“Quem come? Quem planta? Por que as pessoas cozinham o que cozinham? O prato é sempre o final ou parte de uma longa história, muitas vezes dolorosa. “Olhe, eu viajo pelo mundo perguntando às pessoas: ‘O que te faz feliz em uma cozinha? O que você come e o que você gostaria que seus filhos comessem daqui a dez anos?”- Bourdain

Em 2017 começou a produzir o documentário “Wasted! The History of Food Waste” (Lixo! A História do Desperdício Alimentar), com o objetivo de mudar a forma como as pessoas compram, cozinham, reciclam e comem alimentos, demonstrando como é possível tirar máximo proveito de todo tipo de comida, transformando o que a maioria das pessoas considera lixo. Pratos incríveis que criam um sistema alimentar mais seguro. Ele expõe a criminalidade do desperdício de alimentos e nos mostra como cada um de nós pode fazer pequenas mudanças – todas elas deliciosas – para resolver um dos maiores problemas do século XXI.

O PODER DO COZINHEIRO

Ele poderia simplesmente ter vivido sua vida. Entre livros incríveis e viagens pelo mundo. Mas entendeu o seu papel. E eu tinha um baita orgulho de saber que dividia com ele, não só o amor pela gastronomia e pelo ato de escrever sobre ela, mas também essa percepção de como cozinheiros (as) têm o poder de mudar certas realidades.

Foi através das suas linhas que, além de um orgulhoso cozinheiro e professor, comecei há alguns anos a escrever artigos. Minha vida mudou no chão daquela livraria. Simples assim. Mesmo tendo prometido para todos nós que iria permanecer bem ali onde estava, e só sairia quando “eles me arrastarem para fora da linha de produção”, uma implacável doença o separou de todos nós. E ele foi embora, nos fazendo novamente lembrar do quão devastadora e silenciosa é a depressão, e como ela assola (também) cozinhas do mundo inteiro.

E afirmou nas últimas linhas do seu primeiro livro: “Não vou a parte alguma. Espero. Tem sido uma aventura. Tivemos algumas baixas ao longo dos anos. Coisas se quebraram. Coisas se perderam. Mas eu não teria trocado esta vida por nada deste mundo.”

Um cara como o Bourdain não vai embora nunca mais.

Edit- Assim terminou meu artigo em 2018. Contudo, agora em 2021, o relanço na forma de uma segunda homenagem. Pois há 4 dias recebi uma notícia maravilhosa!!

Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain ganhou seu trailer oficial!! O documentário foi anunciado pela primeira vez em 2019. Na época, o diretor compartilhou: “Anthony Bourdain fez mais para nos ajudar a entender uns aos outros do que qualquer pessoa na história da televisão. Ele se conectou com as pessoas não apesar de suas falhas, mas por causa delas. “

A estreia do longa está marcada para a sexta-feira da próxima semana (11), durante o Festival de Cinema de Tribeca (Nova York). O filme chegará aos cinemas dos EUA em 16 de julho e, uma semana depois, começará a ser exibido nas plataformas de streaming HBO Max e CNN.

2 comentários

  1. Bela notícia meu amigo, de fato seu texto também nos faz refletir para seguirmos o legado desse fera das panelas. Abraço

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