Porque é PRECISO pensar a comida.

Faço essa palestra há pelo menos dois anos. Nela, reconto a história da humanidade, falando dos pontos principais sob o olhar da alimentação. Guardo em meus pensamentos, os olhares espantados de boa parte das pessoas, quando consigo colocar a reflexão e a liga da gastronomia nos caminhos da criação das sociedades e formações culturais, a partir da comida.

Explico que as maneiras como pensamos e lidamos com a alimentação hoje, é consequência de uma sucessão de escolhas que as sociedades tiveram e possui uma relação com 4 fatores; a política, a religião, a cultura e a economia.

A saúde, pouco entra nas decisões que definiram as dietas, a produção e commodities – produtos de qualidade e características uniformes, que não são diferenciados de acordo com quem os produziu ou de sua origem, sendo seu preço uniformemente determinado pela oferta e procura internacional- além é claro, da exportação e importação dos alimentos em si.

INDÚSTRIA

A industrialização do alimento, quando se apresentou, foi A solução. Prometeu baratear a comida partir da produção em larga escala. Prometeu também higiene e limpeza, assim como praticidade, garantindo alimentos pré-preparados e disponíveis o ano inteiro. Porém, como no dito popular; “não existe almoço grátis!”

Em troca de todas essas promessas, era preciso garantir consumo e para isso foi criado um processo de padronização. Amparado pela globalização de ingredientes (que teve seu início no período das Grandes Navegações), este culminou no que hoje chamamos de pasteurização do sabor. E isso gerou consequências. Positivas e negativas. Relacionar todas em um único artigo, seria impossível pois, além de incontáveis os pontos e contra pontos, nem tudo que serve para a gastronomia, serve para a indústria. E vice-versa.

MULHER

Ainda assim, há reflexões a serem pontuadas. Primeiro a chamada ressignificação da cozinha.

Desde o século XVII, quando o movimento feminista começou a adquirir características de ação política, as mulheres vêm lutando por seus direitos. O primeiro momento na história em que houve considerável absorção da mão-de-obra feminina foi a Revolução Industrial, quando as fábricas contrataram mulheres com o objetivo de reduzir as despesas com salários. Contudo foram as consequências da I e II Guerras Mundiais (1914 – 1918 e 1939 – 1945, respectivamente), que alteraram profundamente a relação da mulher no mercado de trabalho.

Ao serem convocados para a guerra, mulheres passavam a assumir os negócios da família. A guerra acabou. E com ela a vida de muitos homens que lutaram pelos seus países. Foi nesse momento que as mulheres tiveram que deixar a casa, assumindo permanente negócios familiares e ocupando vagas, nas mais diversas áreas da sociedade.

E com o trabalho, veio o poder de compra e interesse na praticidade da cozinha – devido a um recorrente (atual) e cruel modus operandi social, onde o feminino possui mais responsabilidades e mais turnos de trabalho.

ECONOMIA

Em segundo, e não menos importante, temos a profissão da cozinha. Uma profissão que trabalha com uma necessidade primeira, mas devido as facilidades que a indústria colocou, ficou resumida ao entretenimento, pois em casa, todo mundo estava com o “cozinhar” resolvido.

Gradativamente observamos cozinheiros se transformado em celebridades, direcionando-se para outros rumos, e de certa forma se distanciando de seus pares -cozinheiros(as), alunos(as) e professores(as) – e de sua “profissão de fé”.

A indústria cooptou muitos a se tornarem rótulos, e assim passamos a consumir mais, aumentando a produção. Aliando-se ao agronegócio, a indústria se viu cada vez maior e chegando cada vez mais longe… Tão distante que nosso frango foi parar na China! (A China é o maior comprador de carne bovina, suína e de frango do Brasil-513 mil toneladas de janeiro a novembro de 2019, segundo Associação Brasileira de Proteína Animal).

CULTURA

Fica nítido que neste cenário, só há ganho de um dos lados. O da indústria. Nos lares, cada vez mais se consomem comidas prontas e se perde hábitos de congregação. Perde-se também os aprendizados do alimento cru e das incontáveis combinações de temperos e cozimento, que perfazem culturas alimentares.

Nestas mudanças de paladares, foram substituídos os sabores da comida de vó, por coloridas embalagens, com ilustrações que não refletem em nada, o que se encontra do lado de dentro das caixas (ou sacos).

Assim a “comida” e a cozinha se distanciaram profundamente. Ao mesmo tempo que a comida perde valor, a profissão ganha um falso glamour , em um processo contraditório (digno de teses de doutorados em psicologia), principalmente porque ganha salários quase miseráveis – para comprar os livros e ingredientes caríssimos (porque só podem ser bons, se forem importados).

As mulheres, que antes cozinhavam em casa, agora ou não cozinham tanto, ou carregam o fardo do terceiro turno e cozinham cansadas.

Na cozinha profissional o cozinhar era uma barreira quase intransponível. Carême dizia que mulher não tinha a concentração necessária para a arte culinária. Escoffier dizia que cozinha militar não era lugar de mulher e assim sucessiva, confortável e convenientemente foram dizendo todos, até os dias de hoje.

SAÚDE

Dentro do que a indústria prometeu – alimento seguro (limpo), produção permanente e preço – ela cumpriu. Mas falando em preço, ela cumpriu a que preço? Para que os alimentos durassem mais, foram necessárias alterações. Alterações que já haviam sido estudadas antes, nas guerras.

Napoleão não foi o primeiro, mas sem dúvida, um dos maiores entusiastas das técnicas para alimentar seus soldados. Uma grande estratégia que foi responsável por incontáveis vitórias. Nas duas grandes guerras mundiais, não foi diferente.

Contudo, ao final da 2° Guerra Mundial, a indústria criada para manter soldados alimentados, desligava suas máquinas. E esse era um mercado importante para a economia, que gerou muita riqueza para industriais americanos. Você consegue imaginar o poder da indústria na maior potência capitalista do planeta? Pois então. Eles não estavam felizes. Mas isso não durou muito. Pois perceberam o cenário perfeito.

A mulher entra no mercado de trabalho, e sem tempo para a cozinha (pois sozinha teria que sustentar sua família) está sem saída.
Com diria Abelardo Barbosa, (vulgo Chacrinha) “Nada se cria, tudo se copia!” Para que criar, se já estava pronto?

Então as máquinas foram religadas e nasce um dos maiores impérios industriais da Idade Contemporânea, a indústria de alimentos. Aliada a excelentes campanhas publicitárias, a ração dos soldados virou a comida da população. Em duas versões; refeições embaladas e fast-foods.

E quais são as duas principais características de uma ração militar? Alta capacidade de conservação e alta capacidade energética. Em outras palavras, aditivos e conservantes. O problema é que soldados eram submetidos a essa dieta no front por meses, nós estamos ingerindo essa provisão de guerra por gerações.

Por fim, para que se ganhasse o mercado e se transformasse no maior importador disso e daquilo, foi preciso produzir muito e para isso, foram tomadas mais decisões. Aconteceu com a indústria de alimentos. Por que seria diferente com o agronegócio?

Então se torna comum inserir nas rações dos animais, pequenas doses de antibióticos para “evitar” que os bichos fiquem doentes e deixem os outros doentes. Com a agricultura, não foi diferente.. E o consumidor? Quais são os efeitos? Nós sabemos.

FUTURO

Estamos doentes. Somos obesos, hipertensos, cardiopatas e alérgicos. A comida está doente. Tivemos a gripe viária, a Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB)- conhecida como “Mal da Vaca Louca”, a gripe suína e agora o Coronavírus.

Todas as doenças vieram da comida ou tiveram nelas, potencialidades. Ninguém discute sobre isso ou sobre a produção alimentar. Tão pouco se preocupa com os agrotóxicos. Com os consumos exagerados. E quase ninguém, sabe cozinhar.

O maior problema da maioria confinados nesta quarentena, em absolutamente todas as conversas é: o quão é difícil cozinhar, ou, o quão é demorado e exige atenção.

E mesmo assim os negócios gastronômicos estão quebrando e os cozinheiros profissionais estão sem como sobreviver, e mesmo sem ninguém saber cozinhar, ninguém se preocupa com eles. Ninguém chamou eles para cozinhar em casa (ainda mais agora). Ninguém quer pagar o “que acham caro” pela comida. Mas não sabem cozinhar, mesmo estando doentes.

A indústria alimentícia, mal doou um pacote de recheado para a pesquisa da cura do Coronavírus. E em breve, tudo volta ao seu curso. A indústria vendendo, o agronegócio vendendo e a gente sem pensar em comida, comendo qualquer coisa. É isso mesmo que queremos, neste novo mundo que nos espera lá fora?

2 comentários

  1. Olá, então o que nos resta? Para mim, enquanto mulher, me resta ou me sobra teimosia de continuar tentando fazer um serviço , como dizem, igual de formiguinha, experimentando, conversando, convencendo, cozinhando e aprendendo sempre, para mudar pelo menos os que estão mais próximos.

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  2. E nesse tempo aquartelados deveríamos nos preocupar exatamente com essa parte: comida. E comida nutritiva e de verdade. Contraditório não?? Se é exatamente a imunidade que garante a sobrevivência porque não nos preocupamos com essa parte. Reflexão de uma cozinheira. E no momento graças à Deus empregada.

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