Os primeiros passos

“A gente come com os olhos!” Este não é um dito popular sem fundamento ou, alguma simples analogia. Realmente, ao olhar uma comida e achá-la bonita, ativamos o mais profundo sentimento hedonista, e a saliva aumenta, o nariz atiça e a vontade de comer imediatamente se instala.

Existe um momento de nossa profissão que percebemos a naturalidade com que utilizamos as técnicas básicas da gastronomia, encontrando assim maior facilidade em nosso ofício. Essa percepção se comporta então como um trampolim que nos joga na aventura da criação de cardápios e de pratos. Este é um especial em 4 partes que vai abordar o processo criativo da montagem dos mesmos, a partir da ótica do design, da composição e do desejo de quem come. Pretendemos apresentar o que se relaciona com as principais técnicas entendendo que isto é uma arte, e, portanto, em constante processo evolutivo.

TÉCNICAS

Adequar métodos de cocção e cortes clássicos, levando em consideração as características do alimento (tais como, atividade de água ou excesso de fibras), nos permite aproveitar com excelência as características dos insumos transformando os aspectos não favoráveis, e destacando qualidades sensoriais. Esta talvez seja a primeira grande dica: atente a aprender técnicas o quão possível. Se você é estudante de gastronomia, com certeza tem a oportunidade de ter uma disciplina somente para estudar isso. Aproveite o quanto pode. Invista em utensílios e em livros (tem alguns bem bacanas somente sobre técnicas) sem parcimônia.

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Uma simples julienne bem executada pode transformar um preparo
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Um peito de pato no ponto correto pode ser apresentado aproveitando todo seu potencial

Presta atenção também nas aulas de bioquímica, que vão te deixar consciente das reações nas cocções. Estes conceitos e teorias práticas vão compor os alicerces para teu conhecimento e sem dúvidas, serão muito valorosos para o ato de empratar. Se você não está estudando, não tem problema. Assista vídeos. Muitos vídeos de chefes cozinhando. Treine quantas vezes for possível. Anote tudo! Repita. Tente até chegar onde você quer e somente aí, vá para o próximo passo.

MEMÓRIA GUSTATIVA

Outra característica marcante deste novo ciclo é a capacidade de criação baseada na memória gustativa. Em outras palavras, o profissional adquire a capacidade de lembrar nitidamente de sabores, aromas, texturas e cores dos alimentos, mediante suas transformações – sob a ação (ou não) do calor ou acidez- sem mesmo estar diante dele.

Estas habilidades permitem com que, o cozinheiro ou cozinheira, consigam conceber combinações e analisar assim as suas harmonias antes de entrar na cozinha. Tais capacidades lhes permitem ser mais assertivos quando, ao conceber um cardápio e passarem para a fase de laboratório (testes), aproveitarem melhor os insumos com mínimas perdas.

sadasd                                                                                                Se por algum motivo você julga não ter muitas memórias, nunca é tarde. Quanto mais rica estiver a paleta de sabores, maior será seu poder criativo. Não se prenda aos convencionais. Por exemplo, não importa que legume é comida salgada, pois ele pode contribuir para uma boa sobremesa. Também não importa que status tem o insumo, pois um bom cozinheiro pode fazer mágica na cozinha, transformando o ordinário em extraordinário.

A criatividade realmente é condição básica para a profissão, mas quando falamos de comida, falamos de multidisciplinaridade todo o tempo. Então, não adianta somente um tipo de conhecimento para se obter bons resultados. Se ater somente ao convencional lhe dará a oportunidade de reproduzir bem feito. Mas para chegar ao próximo passo do processo criativo é necessário investir nas diversas possibilidades da cozinha profissional (como conhecimento profundo de ingredientes e métodos de cocção, por exemplo) e lembrar que está na repetição o segredo do aprimoramento.

Os pratos com aparências provocativas e variações harmônicas de texturas, cores e alturas possuem maior aceitação e demonstram habilidades técnicas do cozinheiro. Para se chegar a estes resultados, é fundamental aliar a memória gustativa (onde muito de sua cultura alimentar se encontra) ao processo criativo. Estas habilidades são complexas, e que demoram para serem sedimentadas, mas são de grande importância na diferenciação profissional para mercado e na vida do cozinheiro profissional. Lembrar dos sabores e saber combiná-los ainda em pensamento, é como um(a) pintor(a) que olha para a paisagem e a relaciona diretamente com sua vasta paleta de cores. A memória gustativa pode despertar a imaginação nas combinações de uma criação ou ao experimentar um ingrediente novo, instintivamente, lembrar de todas as possibilidades de harmonização já experimentadas anteriormente.

UMA HISTÓRIA NO PRATO

Então receitas incríveis são criadas, numa mistura de cores, aromas, texturas e sabores. Mas isso não é tudo. Em um menu degustação, por exemplo, o curso de pratos conta uma história para quem degusta.  Porém, ela seria incompleta se não fosse dada a devida atenção a forma como o alimento chega à mesa.  Esta é a importância do domínio das técnicas de apresentação dos pratos, ou como alguns profissionais chamam: técnicas para o empratamento.

Em linhas gerais, tais técnicas se baseiam em uma mistura muito rica de sabores, texturas, formas, cores e alturas. E baseado em um planejamento muito bem definido de reações físicas, químicas e biológicas os alimentos se transformam em peças de uma linda composição planejada antes mesmo de chegar ao prato.

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O conceito, ou mesmo a palavra empratamento é muita nova, tanto que você não encontrará referência à ela em alguns dicionários. Como não temos definições claras, o ideal é buscar a origem de como estes conceitos dão forma à técnica.

NOUVELLE CUSINE

O berço da gastronomia moderna começou com a nouvelle cuisine do mestre Paul Bocuse, no início da década de 70. Esta nova Era abriu caminho para um grande influxo das técnicas, processos culinários e padrões estéticos japoneses na cozinha francesa. A relevância do frescor dos ingredientes, simplicidade das técnicas de cozimento e preservação dos sabores naturais – normas que constituem o fundamento da cozinha japonesa. Com essa, então, nova possibilidade de serviço de inúmeros pratos em uma mesma refeição, os comensais puderam degustar diversos sabores em porções diminutas, dando a possibilidade de cozinheiros e cozinheiras criarem formas em espaços antes preenchidos por grandes quantidades de alimento. O prato havia se transformado em uma tela.

Na década seguinte, a transformação do olhar sobre a gastronomia se intensificou, ao surgir um movimento de aproximação científica à gastronomia, através de cientistas como Nicholas Kurti, Harold McGee e Hervé This.

GASTRONOMIA MOLECULAR

Esse movimento, denominado Molecular Física e Gastronomia (nome dado por Kurti em 1988, e rebatizado de Gastronomia Molecular por Hervé This em 1998), iniciou o estudo dos processos químicos e físicos presentes na cozinha.  Entender as reações físicas e químicas dos alimentos permitiu que os cozinheiros olhassem para o prato com maior cuidado na sua forma, textura e cores. Neste momento, novas técnicas foram desenvolvidas, fornos e fogões começaram a dividir espaço com termo circuladores e máquinas a vácuo nas cozinhas profissionais.

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Técnicas de gelatinização, esferificação, construção de espumas e ares, texturização de lipídios, colagem de proteínas (baseadas no uso de novos ingredientes) inundaram o mercado gastronômico de novidades, polemicas e incertezas sobre o futuro da gastronomia profissional. Mas uma coisa era certa, nada seria como antes.

Aliado a este novo olhar sobre o prato, cozinheiros entenderam que somente através de experiências que ultrapassassem as barreiras de uma cozinha, seria possível criar novos formatos para as tradicionais apresentações de sua comida. Hoje a cozinha molecular perdeu força, mas deixou legados importantes para a gastronomia profissional.
Apesar de poucos restaurantes ainda se especializarem no tema, técnicas, equipamentos e utensílios desta nova Era podem ser facilmente encontrados em praticamente todos os grandes restaurantes do mundo, comprovando que os avanços intelectuais e práticos alcançados através deste movimento estarão sempre presentes.

ARTES 

As artes plásticas são representações concebidas através de pinturas, esculturas e outras formas de representação visual, onde são explicitados sentimentos através de materiais diversos, bem como técnicas que podem se inovar a cada momento.

Assim entram em cena as artes.  Nas suas mais diversas formas. E através de livros, filmes e músicas cozinheiros buscaram inspirações. Entretanto, foi nas artes plásticas que tudo ficou mais evidente. Do latim ars, a arte diz respeito as criações do ser humano que procuram expressar uma visão sensível do mundo real ou imaginário. As formas vistas em esculturas e na arquitetura inspiram cozinheiros há muito tempo…

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Os desenhos de bolos de Antonin Carême (1784-1833)
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Desenvolvimento de uma sobremesa em um restaurante contemporâneo

E dificilmente você irá encontrar tal arte sem a manipulação de cores. A cor é uma percepção visual provocada pela ação de um feixe de fótons sobre células especializadas da retina, que transmitem através de informação pré-processada no nervo óptico, impressões para o sistema nervoso. Entender o poder destas impressões é fundamental para a excelência deste processo, que mistura formas e cores para criar prazer ao comensal, antes mesmo de levar comida à boca.

CORES

As cores primárias e também conhecidas como “cores puras” (azul, amarelo e vermelho), são originárias de pigmentos naturais (vegetal e mineral). Contudo, cozinheiros tem a sorte de encontrar alimentos com uma gama de cores bem maior, permitindo composições maravilhosas, não só de cores, como também de sabores!

Em um estudo, relatado no livro “A Psicologia das Cores – Como as cores afetam a emoção e a razão”, de Eva Heller, foram consultadas 2000 pessoas com idades entre 14 e 97 anos na Alemanha, mostrando os efeitos das cores no psicológico do ser humano.

O resultado das pesquisas mostrou que não existe cor sem significado e ela sempre vai estar relacionada a um sentimento ou qualidade, dependendo de seu contexto.  Pesquisas como esta, são amplamente utilizadas pelas indústrias no desenvolvimento de marcas, rótulos e até mesmo no desenvolvimento de alguns alimentos.

Na cozinha, é possível manipular novas cores através, não somente da escolha dos ingredientes a serem preparados, como também cuidado na técnica utilizada para cada um deles. Um alimento pode ganhar tonalidades distintas pelo resultado dos métodos de cocção empregados, assim como é possível conseguir formas particulares dependendo da técnica de corte utilizada.

Assim, o cozinheiro ou cozinheira acaba por controlar inteiramente o formato de apresentação do preparo. E através da sensibilidade do repertório de provocações artísticas, a qual foi exposto durante uma vida (tais como; esculturas, pinturas, desenhos, livros,  músicas, danças, peças teatrais, filmes, …), consegue fazer da organização de elementos em um prato, uma experiência sensorial ímpar.

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Segundo o estudo de Heller, a combinação das cores vermelha e amarela, por exemplo,  possui a capacidade de despertar a fome… A indústria de alimento, na tentativa de vender seus produtos (que cada vez mais se distanciam do conceito de alimento) já entendeu isso.

Saia da cozinha sempre que possível para ver o mundo… Se permita ser provocado por novas possibilidades  Pesquise mais sobre outros assuntos (além da gastronomia), e entenda que certos conceitos do seu estabelecimento, cardápio ou até mesmo da sua vida poderão mudar radicalmente. Para melhor.

Eis algumas dicas estabelecidas depois de muito estudar, observar e executar…

REGRAS DE OURO PARA UM BOM EMPRATADO

  1. A apresentação não deve NUNCA ser mais importante que o sabor de um prato. A harmonia entre a apresentação e sabores é essencial. É melhor um prato feio com um sabor incrível, do que um prato lindo com um sabor horrível!
  1. Jamais diminua a quantidade de alimento em um prato para favorecer sua aparência. Caso queria ser minimalista, opte por um menu degustação, em uma sequência de pratos que irá perfazer a quantidade ideal de uma refeição, ou pense em louças maiores que permitam você trabalhar com os chamados “espaços negativos”, que nada mais são do que os espaços não preenchidos do prato (que tendem a valorizar e organizar ainda mais os ingredientes).
  1. Quanto maior a complexidade da montagem de um prato, maior será a chance de você entregar um prato fora da temperatura proposta. A operação precisa ser pensada junto com a proposta de empratamento.
  1. Tudo que está no prato deve ser comestível e harmonioso com o restante dos ingredientes. O comensal não tem obrigação alguma de conhecer os ingredientes. O profissional é você. Ele está ali para comer o que você propôs. Então nada de pimentas inteiras ou galhos de ervas aromáticas.

Nas próximas semanas, vamos apresentar outros elementos que compõe o processo moderno do empratamento e a criação dos conceitos.

Até breve!

5 comentários

    1. Não há um link próprio para baixar. Mas você pode imprimir em pdf, através da opção que você encontra apertando o botão direito do mouse, ou através do menu do navegador (se estiver utilizando um celular).

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