A desconhecida História por trás da Dólmã

Este texto possui duas funções muito importantes para a gastronomia. A primeira é a busca pelas origens das coisas que nos cercam enquanto profissionais. A cozinha é rodeada de símbolos e histórias. E com um olhar cuidadoso, podemos encontrar nossas origens enquanto profissionais, nos orgulhando do caminho trilhado, homenageando quem nos fez chegar até aqui. A segunda função é demonstrar como a pesquisa acadêmica se torna vital para nossa área, e por isso a urgência da nossa atenção enquanto aluno(a) e professor(a) na construção, leitura e promoção desta ferramenta tão poderosa para nossa geração e as futuras.

Diante das múltiplas explicações que versam sobre a origem dos uniformes de cozinheiros e cozinheiras encontradas em livros, reportagens e sites na internet, percebi a necessidade de uma pesquisa aprofundada sobre o tema. Muito pelo interessante conteúdo histórico que envolve o fato como também pela pulverização do assunto.

Mas antes de falarmos do uniforme da cozinha é importante entender o simbolismo dos uniformes nas mais diferentes organizações sociais, além é claro de suas características funcionais, observada nos estudos de segurança do trabalho como EPI`s (Equipamentos de Proteção Individual), assim como nas normas que regem o manipulação e segurança dos alimentos.

Particularmente na última década, a gastronomia no Brasil tem experimentado transformações significativas na sua imagem enquanto ofício e as interpretações (muitas vezes equivocadas) quanto as funções e rotinas de um(a) cozinheiro(a) profissional. Este artigo então também se propõe, por consequência, provocar a desconstrução de equivocados significados que margeiam a profissão e seus profissionais.

A nomenclatura “uniforme” surge, segundo a professora da USP Katiene Nogueira da Silva, por volta do século XV com o exército, uma das primeiras organizações a se utilizar deste tipo de indumentária. Ela era igual para todos os militares, independente de sua patente e, em outras instituições, um pouco menos disciplinares no tocante da obrigatoriedade, ela também circulava e fazia parte deste universo como, por exemplo, o caso dos hospitais, hospícios e asilos.

Então a professora da UFRGS, Sandra Mara Corazza, denomina o uniforme como farda ou fardamento, o que pode ser entendido também como aquilo que possui apenas uma forma. E para tanto, um vestuário padronizado de utilização regular, de uma instituição, classe ou corporação, confeccionados para tornar quem o usa semelhante ou idêntico. Uniformes profissionais tem como objetivo maior a identidade e organização.

Mas seu significado também permeia o orgulho de fazer parte de algo maior. Há algo de especial, um sentimento coletivo que envolve todos os profissionais de um determinado trabalho, ao usar a roupa que os identifica como pertencentes a um grupo específico. É claro, que tal sensação é potencializada pelo amor devotado ao ofício escolhido. Na gastronomia, isso se tornou nítido.

Talvez uma das primeiras aparições históricas dos uniformes de cozinha tenham surgidos na Era Medieval ( século XIV) nos famosos Contos da Cantuária (uma coleção de histórias escritas a partir de 1387 por Geoffrey Chaucer – considerado um dos consolidadores da língua inglesa). Nele o cozinheiro é descrito usando um avental!

Contudo foi no século XIX , que o cozinheiro francês Marie-Antoine Carême (1784-1833) esboçou o que hoje conhecemos como dólmã – do turco dólman: “túnica” – (gambuza ou farda). E segundo os estudo que me levaram a escrever este artigo, sua inspiração não foi no então exército francês Napoleônico, e sim nas túnicas czarinas da Rússia do século XIX. A pesquisa teve início com um levantamento das vestimentas militares do início do século 19. O recorte temporal foi escolhido com base cronológica nos escritos que remontam a vida e obra de Carême.

E 1822, aos 38 anos, Carême lança um dos livros mais importantes da história das gastronomia clássica francesa chamado “Le Maitre d’Hotel Francais” . Tal volume, nos presenteia com o esboço de um desenho do que seria a renovação dos uniformes de cozinheiros profissionais que existia até então.

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No desenho, os cozinheiros são representados usando o chapéu, calças, uma jaqueta transpassada e um avental. Fica nítida a intenção de Antonin em criar uma ruptura dos padrões vigentes. Ilan Kelly na biografia Carême- Cozinheiro dos Reis, descreve também o momento em que o chef cria um importante elemento do uniforme, a Toque Blanche (chapéu de cozinheiro). No entanto este uniforme só seria estabelecido em uma cozinha profissional, em 1878, com a abertura primeiro restaurante de Auguste Escoffier , o “Le Faisan d’Or.

A identidade visual dos cozinheiros e cozinheiras estabelecida por Carême em 1822 e solidificada por Escoffier 56 anos depois, levou o pintor impressionista francês Théodule Ribot (1823-1891), a dedicar telas à aquela que seria a identidade máxima da profissão até os dias de hoje, como podemos ver nas telas a seguir.Théodule Ribot (1823-1891) 2.jpg

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O pintor realista e acadêmico francês, Jean Georges Vibert (1840-1902) em 1890, acabou também sendo influenciado em suas obras, como podemos ver;

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Assim como o trabalho de Sir William Newenham Montague Orpen (1878 -1931) que foi um artista irlandês que trabalhou maioritariamente em Londres. William Orpen foi um excelente desenhista e um retratista popular e comercialmente bem-sucedido, durante o reinado do rei Eduardo VII no Reino Unido.

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Contudo a origem desta indumentária tão característica nos remete a relação França- Rússia no final da era Napoleônica. Neste período Carême era o chef de Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, diplomata francês em meados de 1814. A relação próxima de Carême com o Czar russo Alexandre I.

“Na sala de jantar do Hôtel Talleyrand, o Czar seu viu diante de um dilema diplomático, que resolver de imediato, se bem que de forma não convencional. Esperava-se que brindasse ao rei de Roma ou a alguns dos Bourbon que reivindicavam o trono francês e, em vez disso, ele ergueu o seu copo para o rei dos cozinheiros, Carême.”
(CARÊME Cozinheiro do Reis -Ian Kelly, 2015, p.99)

E foi justamente esta passagem que me levou a buscar a então história dos uniformes militares russos, uma vez que os então uniformes franceses não tinham tamanha semelhança com o esboço de Antonin oito anos depois do jantar em que foi homenageado.

Se olharmos o uniforme militar francês de 1814 – 1825 , não observamos grandes semelhanças com nossas dólmãs atuais.

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fonte- https://www.alamy.com/stock-photo-french-army-uniforms-infantry-1814-1825-grenadier-1812-1815-and-cavalry-29629703.html

Então me debrucei sobre a vestimenta militar russa e encontrei o estudo minucioso do historiador Aleksandr Verchínin, no especial para a Gazeta Russa em 2015. Nele podemos observar uma semelhança significativa, que nos leva a crer na inspiração que levou Carême o produzir seu tão famoso esboço. Para facilitar a evolução deste uniforme no passar dos anos e sua semelhança com nosso uniforme de cozinheiro atual, montei (abaixo) uma linha temporal;

No registro abaixo podemos observar o uniforme russo de 1808 e sua já semelhança com o modelo esboçado por Carême ;russo 1808 .jpg

A vestimenta do czar Alexandre III, deixa ainda mais evidente na pintura abaixo;

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Até 1945 com esta foto , torna ainda mais válida tal hipótese, conforme mostra a foto de um oficial russo.

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É possível observar a configuração de peito duplo e a linha de botões paralelas no peito, nas três imagens, não deixam dúvidas quanto a semelhança da dólmã contemporânea.

Ao término deste trabalho de pesquisa investigativa, fica evidente a necessidade de cada vez mais a gastronomia, enquanto academia, mergulhar na história da humanidade, trazendo a tona sua identidade, nas suas multifacetadas áreas de atuação. Entender, por exemplo, a influência russa em um dos maiores símbolos da cultura francesa, demonstra a profunda capacidade que a área possui, de ser globalizada, muito tempo antes do termo ser cunhado.

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